São Paulo e Le Mans

São Paulo, a grande metrópole, a propalada “locomotiva” do Brasil, a “terra da garoa” de Adoniran, Palmeiras, Corinthians, ABC, Joelma e Maluf.

Le Mans, a maior de todas no mundo endurance. Gigante beirando o insano exagero, feita para homens e mulheres de braço e mente sintonizados entre máquina e estratégia, entre o sol, a chuva e a noite de La Sarthe, Curvas, retas, glorias e tragédias, quilômetros de histórias dignamente rotuladas pelo centenário.

Viver isso tudo ao mesmo tempo? Entre o sonho e o desconhecido, e ainda diante da grande cidade que, na adolescência inocente, sonhava em conhecer, parecia uma loucura. Tudo isso tem mais significado do que o desempenho de uma função ou o conviver com cabeças-de-gasolina do mais alto gabarito.

Eu admito que nem fazia ideia até o mestre Sergio Milani me perguntar se topava a parada, tendo ao lado o irmão/diretor da cúpula do G&M Milton Rubinho, do alto de seu conhecimento extenso sobre protótipos. Era algo impensado, protótipos não eram meu forte apesar do fascínio que despertavam. Valeria a pena? Eu daria conta?

Eu era o jornalista mais temeroso do desconhecido que podia haver, admito. E até a semana da corrida nem sabia onde iria me basear até vir a verdadeira convocação: “chefe, precisamos de você em São Paulo”. Respirei fundo, como se pronto estivesse para pegar um paraquedas e me soltar no mundo. Vai ou racha?

Para de fazer perguntas, André! Te jogue e faça valer todo o processo terapêutico que vens desenvolvendo. Era a hora, contra a insegurança e o medo, respirei fundo e atendi ao grito do Milton, como se me tivesse balançando os ombros: “seu lazarento! Agora você vem mesmo pra São Paulo!”.

E a gente se larga, cai na estrada mesmo com todas as inseguranças possíveis. Na ida, o pôr-do-sol de dias cinematográficos convidava a gente para refletir, olha para trás e lembra de tempos de borboletas, da inocência que gritava por evolução de vida, os amigos te colocando em pé. Milton é um deles, de fato, e a gratidão era lembrada a cada quilômetro vencido.

Foi uma luta, não vou negar a vocês. Vindo de um resfriado e tosse constante e lendo o spotter guide de Le Mans o tempo todo, confesso que não foi fácil dormir (ou tentar dormir) pelo caminho. O ônibus parecia estar num tunel interdimensional, viajando entre espaços de tempo na noite, sem eu mesmo perceber como estava do lado de fora. O que para os mortais em volta era normal, para mim soava quase surreal.

O GPS já apontava Miracatu pela proa quando me veio a lembrança do velho Godofredo: meu avô tinha sido o único da família a pisar em São Paulo, passando por Iguape e pela grande cidade. Me contava que estava em Sampa combalido pela malária, sobreviveu por milagre, garrafões de ervas e uma dolorida injeção de Paludan no quarto de hotel.

Dois alarmes falsos de descabelar o Milton (e olha que cabelo é o que falta para tanto) até chegar, enfim, ao gigante Tietê. Recordei na hora das matérias do Jornal Nacional em tempo de fim de ano, com tantas famílias e pessoas indo e vindo pelas estradas rumo a capital paulista e parando naquele colosso. Um formigueiro, uma loucura controlada que nunca parava.

Na estadia, até briga por panquecas rolou na mesa, para a risada de toda a casa do bom capivara e família. Que lugar! Típico paulista: casa aconchegante, como se voltasse aos anos 1960 nos seus saia-e-blusa, ideal para respirar fundo antes da peleja, como se eu fosse o único nervoso ali naquele lugar: perguntem pro Milton, ele estava tão quanto eu.

Ok, é a hora. Aquilo que você via Galvão e Edgard fazendo, você o faria e com o melhor da técnica ao seu lado. Um burger no New Dog e marche, estávamos no Itaim Bibi, um espigão que rompia pelo escuro noturno e só veria nossas caras no dia seguinte, já com o sol a pino. Na entrada, um último incentivo duplo: nós vamos conseguir.

E não sei por que o estado de nervos. Desde que me joguei na aventura de narrar artesanalmente corridas antigas, entre F1 e Indy, eu meio que sabia do metier da coisa, mas teimava em pensar que estava num campo totalmente desconhecido. Afinal, era Le Mans, a magnitude da história que se calculava em números superlativos, bem distante do “básico” que o hobby de toda uma vida era pra mim e pro Milton.

Chegamos. O calor da recepção nos deu uma tranquilidade enorme. Na casa dos Saad, eram os garotos (sim, incluo o Mattar pois ele tem alma de garotão das praias do Rio) que faziam a hora e seguiam o script do Bolacha. Estávamos entre os bretões, os que possivelmente eram mais letrados que um garoto de Santa Catarina que entrou nessa ciranda por conta de um pai e um primo que adorava Indy.

Mestre Milani, quase um relicário de tudo e mais um pouco, estendeu os braços efusivamente. O carioca estava exultante mesmo embaixo de toda a tensão que cercava tanto ele quanto Felipe Meira, garoto fantástico, focado, um sábio de proporções estratosféricas e cirúrgicos nos planos. Os dois respiravam aliviados, e eu e o capivara exultávamos: enfim encontramos o famoso Milhouse tricolor sedento pelos 0,6s.

Na sala, o acompanhar nervoso da prova. Trocava uma prosa sem compromisso com a amável Deborah Almeida. Enfim, estava diante de uma autêntica cabeça-de-gasolina dos textos. Fotógrafa com olhar de arte e uma torcida incontida pela marca de Maranello, ao mesmo tempo que exultava os ares passados de Sebastian Vettel. Que conversa amável, me tirou todos os temores que tinha para com a primeira-dama de Dom Rubens.

Milton já estava em casa também, tão mais em casa do que eu, talvez, que estava ainda driblando os pigarros do resfriado. Diante de nós também estava Geferson Paul Tracy Kern, um dos maiores ases da Indy em nossas plagas, meridional em seu conhecimento e despontando firme como um dos grandes da crônica do esporte a motor. Privilégios nossos…

A casa dos Saad no Itaim era só aconchego. Os do recinto não escondiam a alegria, e cada vez mais me sentia senhor da situação. Eu sabia, agora, o que faria ali, cercado pela tecnologia do lugar e pela cancha que tinha na mão, sem contar o capivara e sua enciclopédia mental. Antes de assumir a boléia, enfim, a benção de Dom Rodrigo Mattar: este sim, a sumidade dos protótipos.

O abraço efusivo, típico de um bom carioca, era o arremate de uma amizade começada com uma F310B para o “Minis com História”. E o garotão carregava consigo um cabedal de sabedoria das pistas enorme. Não me ouso a debater com ele, mas ouvir toda a história que ele guarda. Simplesmente, um gigante cidadão das pistas que conhecia cada cubo de roda de uma GT40 ou cada trança costurada do macacão de Jean Rondeau.

Era nossa hora. A TV se desligava e a madrugada era por mim e o Milton. Dom Gabriel deixou seu afago na saída e, logo, estava do lado do mestre Aldo. Alias, não sei como ele ainda não está efetivo em um canal de esportes: condução com energia, toque jovial, cheio de técnica e solto, seguro. Me deu toda a calma do mundo para me estabelecer. E no momento certo, ele que deu o empurrão final, com serenidade: “tá com vocês!”

E depois do primeiro cumprimento, lá foram Boina e capivara, num tele transporte sensorial de São Paulo para La Sarthe. Não posso repetir ou descrever as sensações que tive diante de tudo, e creio que nem o Milton pode. O irmão de São Caetano, apertador de parafusos, detonador de motores e atropelador de urubus tornado o maior especialista da cabine. Estava puramente seguro.

Pedi que não fechasse o microfone, a gente iria conversando constantemente, num autêntico “corujão” que definira. O modo, como crivei, era de “Adelaide 1985”, quando Senna quis dar aos madrugadores a diversão, saindo da pista, andando de lado, arrebentando. E fomos nesse estilo: tínhamos a incorporação mental de Silvio Luiz, Ivan Zimmernann e Edgard Mello Filho no mesmo lugar, nada podia nos parar.

Alias, falando em vozes grandiosas do passado, me peguei lembrando de Edemar Annuseck. Meu conterrâneo saiu dessa terrinha da cerveja para ganhar a vida na poderosa Jovem Pan nos tempos de Osmar Santos. Hoje, goza de sua posição como referencia na narração esportiva no país. Olhei para trás e, mesmo que meia-imprensa de Blumenau estivesse dormindo ou alheia, não sabia: eu era só o segundo a trabalhar para um veículo de expressão no esporte (mesmo que de freelancer) a narrar um evento esportivo, e o primeiro em automobilismo. História que se diz mesmo, né?

Mas, digo que seis horas foram pouco e muito ao mesmo tempo. Lutava contra a tosse e o frio do switcher enquanto o Milton se descabelava com o Kevin “cupim” Estre. Entre informações e motores a plena, a forma simples de chegar aos madrugadores, rindo, cantarolando, usando das alcunhas da rede como o Porsche boquinha e o camarão da Nascar. Nem mesmo as slow zone nos tiravam do foco, nem víamos a hora passar.

Ai, a Ferrari, tão histórica quanto Le Mans por completo, nos resolve lembrar por que ela nos exulta os corações e faz chorar os tifosi pelo mundo. Na hora capital, depois do drama, o impetuoso Alessandro Pier Guidi, que talvez não fosse a maior referencia para um “bom piloto”, incorpora os deuses romanos e imprime trens de corrida quase que raivosos. Ele voava, parecia querer decolar do ponto que estava até o pescoço da Toyota que perseguia.

Milton me conta que, no ato pós-pit dramático (era a primeira “morte” do motor nos boxes) ele parou diante do que eu narrava. Pier Guidi não se abalou quando saiu do vácuo de Sebastien Buemi e seu bólido nipônico, colocou por fora, numa manobra geniosa, e a garganta já não doía, a tosse não aparecia, o nariz abril. Os brados foram inevitáveis, o entendimento puro do que é o narrador: o transmissor perfeito da emoção para quem estava vendo.

Estava em êxtase, não queria mais largar, mas o Aldo estava de volta e bem disposto. Um gigante tomaria a boleia do Boina com classe, claro! Hora de respirar fundo, digerir as emoções do lado do Milton naquela madrugada que podia se repetir uma, duas, dez, mil vezes e nunca me faria cansar. E olhava para trás, para tanto, num regozijo psicológico que não dava pra explicar aqui (e já tô escrevendo demais!).

Dali até o fim, na condução do mestre Sergio Lago via RJ, foi um pulo até o momento final, com direito a drama e tudo. Enfim, fizemos a história e vimos a história. Todos choravam por tudo, a Ferrari levava os tifosi ao pranto, eram malditos 58 anos sem o gosto da conquista em Le Mans. E nós, reles sonhadores partícipes da loucura de Milani e Meira, emaranhados em todas as formas de emoção.

No switcher, Mattar nos abraçava numa emoção incontrolada, tirando do peso talvez todas as pedras que lhe atiraram em anos. Milani mantinha a postura altiva, mas não deixava as lágrimas escaparem, tal como Meira, sempre concentrado mas duplamente emocionado.

Eu e Milton não se acreditamos, pouco depois, quando vimos um sujeito nos dando vivas do lado de fora: de casacão de couro e em júbilo, um emocionado Celso Miranda, referencia de todos os garotos que o viram comentar e narrar Indy na juventude, parecia quase como o mensageiro da palavra que, talvez, o Bolacha nos diria: “vocês fizeram história”. Que benção!

Tem quem diga que não se sente isso com automobilismo. Mas você, amável hipócrita, ainda chora viuvosamente a morte de Ayrton Senna dentro de sua ignorância. E te digo, em dedo em riste, que da mesmo para se emocionar com o esporte a motor. O drama de um motor que não liga, a decepção de uma batida, tudo em contraste com a euforia dos vencedores e a vibração da vitória final que escreve uma página de história, para quem correu e para quem contou.

Diante de mim, ainda tão leigo para o mundo dos protótipos, Le Mans mostrou seu gigantismo e tradição intocados. Num momento que o endurance volta aos seus anos dourados, é impossível não se deslumbrar com a competição e o espetáculo de volta ao show. Das marcas, dos ousados botas do dia, das várias memórias que surgem depois de mais uma edição da maratona de La Sarthe. O automobilismo puro, teimoso e aplicado por entre estradas, homens, mulheres e histórias.

Quando voltei ao Tietê, mesmo com Milani me recomendando dar um giro pelo terminal, preferi ficar na plataforma esperando o ônibus chegar. Parecia estar, enfim, baixando a adrenalina de tudo. Me senti como um piloto de Le Mans na acepção da palavra: cansado, enfraquecido, energizado, glorificado, querendo achar o botão de repeat para voltar na sexta a tarde e começar isso tudo de novo (talvez sem a carga do resfriado apenas).

Uma semana depois, praticamente, estou aqui dedilhando essas linhas apenas para colocar em algum lugar do G&M essa experiência e revisita-la quando quiser. Para o grupo que eu e o irmão Douglas Sardo começamos despretensiosamente em 2015, reunindo depois tantos amigos em volta, jamais poderíamos pensar em voar tão longe, sendo que este “longe” não é o fim, não há limites para loucos como a gente.

E, enfim, aqui estamos. Como Ken Miles frustrado pelo emparelhamento na primeira estocada do GT40, como AJ Foyt e seu champanhe jorrando as multidões e tornado elemento do motorsport, como Jacky Ickx caminhando calmamente em silencioso grito, como Michele Mouton sendo o vulcão negro também da estrada, como Jean Rondeau que virou compêndio embaixo d’água com a sua criação, como Jan Lammers discretamente dando lenha no Jaguar V12 em quarta marcha, como o ronco de um Wankel japones, como Tom Kristensen e sua coleção de troféus vindos a granel de La Sarthe…

Como tudo que entra naquele pedaço de chão francês e virou história, cá eu tremo de emoção e olho pra cada um que esteve naquele metro quadrado do Itaim Bibi. E, sinceridade? Fizemos o mesmo que todos os grande nomes ditos anteriormente. O Brasil viu, se arrepiou, chorou, riu, sentiu o que é, porque é lá, é lenda pura, é resistência, sagração.

Aqui estamos. Somos a nova geração! Viva Le Mans! Viva o motorsport! Viva a amizade! Viva!

São Paulo, 10 e 11 de junho de 2023

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