Dorchy, 405

“Roger Dorchy foi um piloto de automobilismo francês…”

Tá, a linha fina de qualquer Wikipédia é muito curta para este cidadão. Afinal de contas, quem era Roger Dorchy? De onde surgiu este francês de Ferté-Saint-Samson para ser tão importante? E por que podemos dizer que o que ele fez jamais será igualado?

Eu já elucubrei sobre isso quando mencionei da memória de Philippe Streiff, a máxima que leva homens a buscar a glória e, mesmo não a conseguindo, são considerados intocáveis, veneráveis e respeitáveis de uma geração cercada de todos os riscos possíveis do tempo dourado do automobilismo.

Essa máxima serve para os sonhadores, quão simpáticos são quando fazem o que gostam. Levam a mais de 400 por hora aquele velho ditado no para-choque: “escolha um trabalho que gostes e nunca trabalharás na vida”.

Velhos sonhadores. Lunáticos, diriam, dispendendo fortunas quase que inexistentes para, simplesmente, fazerem parte de uma aldeia veloz. Nunca se tem dinheiro para nem comprar um quarto de combustível e qualquer mecenas ou empresa que aparece com alguns trocados e experiência é um oásis reluzente.

Ah, esses sonhadores e suas máquinas! Quebráveis? Talvez, mas eles sim são os donos das histórias mais fantásticas que o automobilismo reserva. Nem mesmo os endinheirados ou os grandes do olimpo os igualariam em certos casos, por que ali reside a raiz da paixão de tudo, que faz os pobres cuspirem as vespas dos poderosos, mas não arredarem pé do que gostam e do que fazem.

Esses doidos como Gerard Welter e Michel Meunier, de bater cartão todo ano em Le Mans mesmo sabendo que não chegariam ao fim. Chamas de “traquizomba” um carro de linhas simples e um engenho vindo duma mistura de duas partes de França para uma de Suécia que, para ser rápido, precisaria vencer, primeiro, as risadas despretensiosas de qualquer 952 a sua frente.

Pois é, se verba ou tecnologia de ponta lhe faltam para ser os primeiros, por que não ser “eternos”? Welter e Meunier são lunáticos mesmo, e daqueles que amamos. Vamos fazer o nosso carro não ser vencedor, basta ele ser rápido, tão rápido que os três dígitos seriam lembrados para sempre, e vindos de um modelo artesanal, simplório, engenhoso e, pelos compêndios, candidato a esquecível.

Tentativas vieram, os cartolas do ACO davam de ombros e diziam que não, mas eis que, exatos 35 anos atrás, eles deram o braço a torcer por aquele bólido verde-e-branco engenhoso e paupérrimo. Depois de apanhar do engenho, ele voltou aos boxes e por lá ficou. Quem passava e quantas voltas se atrasava, ninguém ligava, pois ele ia voltar, três horas depois, mas ia.

Em pensamento, parece que imaginamos ver Welter olhar para aquele cidadão francês no cockpit e dizer, quase no grito em voz rouca duelando com os roncos dos motores na reta: “vai lá, mete o pé até no fundo quando embicar na Les Hunaudieres! Não perde uma chance! Tá tudo liberado! Vai até esta engenhoca ai dar pau! Vamos conseguir, cê vai ver! Eles vão engolir a gente é hoje!”

Dialogo hipotético, claro! Vale a imaginação para dar alguma gargalhada. Mas lá vai o piloto para um sem-número de voltas no talo, no limite, no extremo do conta-giros. Não voou porque a aerodinâmica simples e eficiente o segurou no chão, mas o velhaco da pista resmunga sempre que “foguete não dá ré”, então… 407 por hora tá bom pra você? Ou melhor… 405, pra agradar a turma do leão?

Foi indo, indo, quase colado no banco até o POW! Pronto, acabou a diversão, mas os vizinhos de box pareciam estar diante da turma do manicômio: “ué, o carro deles estoura o motor e eles tão vibrando?” Daquele dia em diante, WM seriam duas letras a serem cravadas em qualquer compêndio de Le Mans, e jamais sairão de lá, sobretudo quando as tesouras picaram a grande reta: 405 por hora e para a memória.

E quando ao cidadão francês Roger Dorchy? Então, o maluco que colou o pé no acelerador neste dia de 1988 era este cidadão vindo da simpática Ferté-Saint-Samson, sem muita pretensão na mente ou muito talento no volante, mas que foi capaz de chegar a La Sarthe, ter alguns culhões e meter o doido, junto de sua equipe, para ser um eterno entre tantos.

É, isto é o automobilismo, que consagra não só os grandes, mas os que tentam algo, sonham e desfrutam de alguma forma, e ainda são lembrados com sorriso simpático de nós todos. Gente como Dorchy, que pouco fez, mas um pouco muito rápido, ousado, eterno.

E então, quem é Roger Dorchy? E te respondo, reverenciando sua memória por tanto e tão pouco: “Roger Dorchy foi um piloto de automobilismo francês, responsável por atingir 405 Km/h com um WM-Peugeot, recorde de velocidade em Le Mans”.

Dieu vous bénisse, monsieur Dorchy…

(Video: Marcio Nomura / Start Your Engines)

(Video: A Mil Por Hora / Rodrigo Mattar)

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