Nelson: mais brasileiro, impossível

O primeiro tricampeão mundial brasileiro de Fórmula 1 é certamente uma personagem única. Nelson Piquet, nascido no Rio de Janeiro, filho de pai médico que chegou a ser Ministro da Saúde, foi levado por este a tentar a sorte no tênis, tendo inclusive ido morar nos Estados Unidos para melhorar as habilidades neste esporte e estudar. É de se imaginar, na verve improvisada e lacônica que foi vista na Fórmula 1, um Piquet jovem mandando às favas todos os adversários do tênis sejam em palavras ou atos.

Sua capacidade de adaptação foi testada logo que resolveu desistir do tênis. Ao ingressar, a contragosto dos pais no automobilismo, tratou de custear a própria aventura abrindo uma oficina. Essa era uma forma de capitalizar recursos financeiros e aumentar o conhecimento técnico. Adquire o Formula Vê, vence corridas com facilidade e de forma natural, mas totalmente sem garantias, parte para a Inglaterra. Lá, tem de se virar novamente, dormindo em oficinas, fazendo bicos pra juntar dinheiro e perambular  sem eira nem beira até chegar na Fórmula 3. Quando se aplica um enredo desses às possibilidades e chances de alguém nascido aqui… [Vale a leitura]

Roberto Moreno e Piquet em Brasília: primeiros anos

O próprio trato com a imprensa e relações públicas afins pode ser avaliado neste período pré-F1: o paulista Chico Serra tinha todo um aparato para cuidar da divulgação de notícias a respeito de sua carreira. É conhecida a história de que as manchetes diziam: “Chico Serra é terceiro em prova vencida por Nelson Piquet”. (É bom que se diga que não há nada de errado com a prática de Chico, obviamente), mas serve para ilustrar o quanto Nelson era reservado e simplesmente não via necessidade em tal prática. Pode-se dizer que isso o afastou da mídia, juntamente com a sua própria natureza de pouca paciência e mau humor, mas não é necessário fazer juízo sobre isso, lembrando ainda que ele começava a se destacar no exato momento que Emerson Fittipaldi, o ídolo de antes, vivia às turras com a mesma imprensa por conta do injusto desprezo com a empreitada da Copersucar.

Alinhado no grid ao lado de Chico Serra nos tempos da F3: dois brasileiros com relacionamento bem diferente com a imprensa

Seu improviso e capacidade tenaz foram logo vistos ao ser companheiro de Lauda em 1978. O austríaco, ao decidir abandonar (temporariamente àquela altura) a carreira, deixou um espólio técnico ao brasileiro, que tratou de acatar a chance e colocar a equipe em condições competitivas logo dois anos depois. A disputa com Alan Jones foi até o fim do ano de 1980 e deixava claro que ele sabia como ser rápido e conservar equipamento, algo crucial naquele período.

Seu título vindo no ano seguinte conquistado com três vitórias foi conseguido em meio ao folclórico fato de ter estado na garagem do seu vice de 1981 – Carlos Reutemann, em Brasília, 1974. Foi um título conquistado em uma temporada imprevisível e concorrida, que o colocou no rol dos campeões.

Com o uso dos motores BMW ele usou de seu conhecimento técnico, usando provavelmente muita coisa aprendida nas oficinas sem muitos recursos dos tempos idos. Umas boas doses de improviso e criatividade para achar brechas nos regulamentos (novamente sem julgamentos, pois era prática usual de praticamente todos naquela época), como por exemplo o motivo de sua desclassificação no GP Brasil de 1982 (peso mínimo do carro) e o polêmico uso de combustível “de foguete” na belíssima Brabham BT52 no ano seguinte. Tudo isso remete ainda à sua perspicácia de contornar o problema de aquecimento de pneus ainda na F3, quando praticamente instituiu o uso de cobertores elétricos, prática em uso ainda hoje, e do revolucionário sistema de distribuição de freio – que posteriormente foram copiados por todos, sem mencionar ainda o fato de que em 1983, o ano do bicampeonato, muitas corridas foram ganhas por conta da estratégia de pitstops para troca de pneus e reabastecimento, prática que era incomum.

Na Brabham BT52, em 1983: campanha do bicampeonato foi marcada por estratégias inteligentes

O paralelo com seu compatriota contemporâneo Ayrton Senna oferece um oposto gigantesco. Senna era cuidadoso e meticuloso ao gerenciar sua imagem junto à assessorias de imprensa para divulgação de seus resultados. Já na Fórmula 3 possuía patrocinadores pessoais e buscava manter um relacionamento estreito com a mídia, tendo inclusive fotógrafo pessoal. Para além dos resultados, Senna foi construído no imaginário popular como alguém mais vitorioso e principalmente mais querido. O imediato julgamento de que um é vilão e o outro mocinho é no mínimo injusto. Senna era a imagem impoluta do “self-made man”: o menino bom e aplicado que se virou na vida de forma justa e obteve sucesso. Já Nelson, o malandro que buscava vantagem em tudo e sacaneava para vencer…

Piquet era conhecido por seu temperamento explosivo. Estava sim, quase que sempre de mau humor. Pelo menos com a imprensa, que muitas vezes também não colaborava e o interpelava com questões técnicas, justamente o ponto forte dele. Quando vinham então perguntas de cunho jornalístico mais raso, sua paciência se esgotava. Ele simplesmente não gostava das obrigações relacionadas à sua pessoa pública, mas isso deixava exposta sua sempre presente autenticidade.

Nos tempos de Williams: habilidade para driblar um ambiente todo inglês e levar o tri no segundo ano

Sua rivalidade com Senna foi sim além das pistas. Nelson nunca fez questão de estreitar laços. Pelo menos dentro das pistas pode-se dizer que o respeito mútuo sempre existiu. Lances como a ultrapassagem histórica na Hungria em 1986 têm contornos e detalhes (o gesto obsceno que não dá para ver por conta das limitações técnicas da época) que ilustram que o nível muito parelho de talento e técnica dos dois sugere que havia espaço para muito mais disputas. Mas como se sabe, os melhores anos de um estavam ficando para trás quando os do outro começaram.

Piquet não segura a risada no pódio da última vitória, Montreal 1991. Dada de bandeja justamente por Mansell!

Piquet demonstrava ainda ter tino e vontade para continuar além de 1991. Negociações e rumores surgiram ao longo daquela última temporada. Um relato surpreendente, de Giorgio Ascanelli, que viria a ser engenheiro de Senna na McLaren ilustra bem o apego e amor de Piquet pela Fórmula 1: foi no chuvoso Gp da Austrália daquele ano, a famosa prova de quatorze voltas. Quando foi dada a bandeira vermelha, Piquet solicitou a Giorgio uma ultima volta de despedida, mas devido à interrupção por conta da chuva torrencial não era permitido. O italiano testemunhou no olhar de Piquet um misto de desolação e conformismo. Era o fim de uma história incrível começada treze anos antes naquele Ensign preto e que rendeu vinte e três vitórias e três títulos mundiais.

Piquet partiu para Indianápolis, na tentativa de disputar as 500 milhas de 1992. Guiando um Menards Buick, vinha se destacando nos treinos preliminares até encarar o seu acidente mais grave desde a Tamburello em 1987: a escapada na curva quatro, em meio àquelas condições traiçoeiras daquele frio mês de Maio lhe renderam fraturas graves nos pés e uma longa e dolorida recuperação. Para provar seu valor, Piquet retorna no ano seguinte e concorre apenas para fechar o capítulo desta tentativa americana na carreira.

Indianápolis 1992: tudo ia bem até o horrível acidente na curva 4

Em meio à participações nas provas de automobilismo do Brasil, se reencontra com a BMW. Pilotando o McLaren F1 GTR com motor V12 da fábrica bávara, disputa provas do GT1 no Brasil em 1996, em um reencontro também com a pista de Brasília. Ainda em 1996 disputa Le Mans pela primeira vez, formando a trinca com Johnny Cecotto e Danny Sulivan pela equipe Bigazzi, terminando em sexto na sua classe. No ano seguinte, forma a equipe com JJ Lehto e o britânico Steve Soper na equipe Schnitzer mas completam somente 236 voltas. Uma pena que não tenha retornado a La Sarthe depois disso. O mundial de Endurance certamente tinha muito a ganhar com sua presença e conhecimento. Garante ainda pela primeira vez, o troféu das Mil Milhas Brasileiras em 1997, pilotando o mesmo McLaren.

Piquet em Brasília, 1996, pilotando o McLaren F1 GTR : reencontro com a BMW e com a cidade que adotou

Nos anos que seguem, conduz o filho Nelson Ângelo Piquet no caminho para a Fórmula 1 iniciado no kart. Nelson serve como um chefe de equipe e conselheiro nos anos de Fórmula 3 e Gp2. Nelsinho fez ótimos campeonatos e disputou de forma ferrenha com Lewis Hamilton o título da categoria de acesso em 2006. Sua chegada à Renault na Fórmula 1 foi cercada de expectativas, e um pódio oportuno no Gp da Alemanha de 2008 foi um alento em um ano difícil. O ocorrido em Singapura não merece mais explicações, mas de tudo o que se sabe e foi dito ficou claro uma coisa: Nelson foi atrás da solução do caso sem deixar detalhes a se esclarecer. Uma vingança fria e calculada a Flavio Briatore foi um desfecho digno a um imbróglio complexo e lamentável que em nada mancha a sua carreira.

Falar do feito notável de ter sido campeão com três marcas de motores diferentes, estar disputando o título na sua segunda temporada completa numa equipe até então desacostumada a pontear e mais ainda – ter se destacado em meio a uma geração de grandes nomes é redundante. O importante e que é mais desprezado no entendimento de Piquet como um todo é justamente sua figura humana. Ele é constantemente relegado às suas declarações polêmicas e o constante e marcante mau humor com a imprensa, como se isso fosse somente o único aspecto a ser explorado de um brasileiro tão importante para o automobilismo mundial.

Piquet inferniza Mansell até no momento da foto histórica de Estoril, 1986!

Agora, sejamos justos. Se formos fazer um julgamento da grande maioria do povo deste país aqui, vamos observar justamente muitas das características da psique de Piquet: Intuitivo, malicioso, inteligente, versátil… Por que então resumir a grandeza de uma carreira incrível nas pistas ao comportamento e temperamento de uma pessoa muito parecida com muitos desta mesma maioria? Quem nunca mesmo que sem querer deu uma declaração polêmica, insultou, foi indelicado, esteve de mau-humor, respondeu de mau jeito ou até mesmo ofendeu alguém? Lembremos que o automobilismo é um esporte extremamente competitivo e cruel. Muitas vezes apenas para se sobreviver nesse meio é preciso fazer uso de uma ou outra das características descritas. Além do que, vale a máxima já explorada por muitos que estão neste universo: os “bonzinhos” nunca foram campeões. O que será que muito brasileiro faria para se dar bem em meio ao covil da Fórmula 1?

Suas artimanhas em oficinas, seus improvisos, sua malícia pungente ao desestabilizar Mansell numa equipe em que não era o preferido. O “empurrãozinho” e as dicas ao amigo de velha data Roberto Moreno para Suzuka 1990, o riso destrambelhado ao ver o mesmo velho rival Mansell parar para lhe dar de bandeja uma vitória… todas facetas de emoções genuinamente humanas. Genuinamente… brasileiras!

 

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