Havia quem, nos anos 1980, dizia que este finlandês boêmio era o herdeiro do espetáculo que Gilles Villeneuve fazia em pista. Andava além do carro, tinha dom de acrobata da esquadrilha, riscava da listinha o tal do limite da máquina: o limite era o que ele podia fazer, pelo menos enquanto ela funcionava decentemente.
A autêntica “vaca brava”, como por vezes Edgard Mello Filho tachava os abusados no volante. O mais desavisado podia achar que aquele finlandês com cara de sueco seria um rosto esquecível enquanto se debelava com a decadente Fittipaldi entre 1980 e 1981, mas Keke apenas aquecia a perspicácia e seria premiado com um digno pote de ouro no fim do arco-íris em 1982.
Quem se resume a dizer que o título de Keke naquele ano foi fruto dos infortúnios dos ponteiros, até acerte a afirmativa, mas vamos ser francos e sinceros: é preciso ter competência para, ao menos, se pronunciar entre os demais: venceu quando tinha que vencer e passou o ausente da disputa (Didier Pironi, claro). Faturou o caneco com um quinto posto no Caesar’s Palace e entrou na galeria dos grandes do seu jeito.
Mas o senhor Keijo era capaz das mais “altas aventuras” em pista, quando a chance o surgia. Vez em quando tivemos esta prova cabal: um 360 em pista, uma vitória andando mais de lado do que reto nas ruas do principado e com uma Williams anêmica (o que não dizia nada de diferença em pista de rua), uma vitória suada numa escaldante Dallas com aparência rica da série e desmaios mil pela pista.
Keijo não tinha papa na língua e não escondia a boemia dos seus atos: breja amiga, um cigarro pra esquecer e mais um fim de semana veloz e acrobático. E do alto das suas peripécias no asfalto, talvez uma das menos lembradas e mais incríveis não teve manobras ousadas, mas uma dose cavalar de audácia e abuso no volante como poucas vezes se viu, e num sábado marcado por protestos (justos), ausências, tensão e calor: Kyalami, 1985.
O ano já tinha ido pro vinagre há tempo. Alain-Marie desentalou da garganta o grito de campeão em Brands Hatch e quem ficou na briga só estava o fazendo atrás do vice-campeonato e por alguma coisa que ainda restava entre a perna no continente africano e a última parada, na terra dos cangurus, o que seria pela vez primeira.
E aquele fim de semana para Keke podia ter sido esquecível, entre percausos, escorregadas e brigas sob o sol afrciano. No entanto, a luz das últimas voltas em Kyalami, diante do público que ainda resistia ao forno em pista, o espetáculo começou: um trem alucinante, todas as válvulas de turbo abertas, pneus na aba da gaita, Keijo era Keke e quem tivesse na frente, que segurasse o bonde ou saia do caminho do trilho.
O coadjuvante que largou em segundo, caíra para quinto, liderou a prova por um pentelhésimo, caiu para sexto depois de rodar e posicionava-se em terceiro depois de um rosário de abandonos, vinha destilando tudo que sabia a cada curva. Era impossível não achar qualquer coisa nas virações das antigas curvas rápidas do saudoso traçado, enchia os olhos de quem gostava de perícia e limite domando uma máquina que muitos diziam ser indomável e sabidamente mais frágil.
Keke dava de ombros, ao dado momento que Galvão Bueno e Reginaldo Leme tiveram de engolir em seco qualquer bobagem insignificante na transmissão para voltar-se ao carro #6 da Williams. O engenho Honda soava como uma sinfonia nipônica regida pelo saudoso Seiji Ozawa, entre os gritos beirando a quebra e a doma nas telegrafadas dentro da tangência de cada curva, para uma chuva de frases protestantes e adjetivos dos dois brasileiros na cabine pendurados pela linha da Embratel.
Prost pela proa, e o campeão não queria encrenca pra si aguentando uma McLaren que mais agia sob os gáses do que pela gasolina em si circulando no TAG-Porsche. E tão logo pode perceber-se, Keke já dava “sinais de luz” no seu trem alucinante, avisando com voltas dignas de treino oficial que vinha para passar. Foi sem dar nem oi ou convidar para o café, qualquer manobra de defesa poderia ser um acidente cômico que mancharia a beleza da ousada empreitada finlandesa.
E falando no velho Carlos Eduardo, acompanhar o desatado vesperal rosberguiano em Kyalami é um tempero a mais. Ao passar pelo francês de Woking, ainda colocou mais sal nas imagens geradas ao Brasil: “tem cinco voltas! E a diferença não é tão grande pro Mansell não!”. Nigel era o lider sem ver sombra de adversário fazia tempo, e seria o companheiro de esquadra sedento que se prontificava a catar a vitória com a adaga nos dentes, pronto pra peleia.
O show continua: engenho Honda berrando copiosamente, os pneus que aguentassem as derrapadas e fritadas com o que restava de borracha na banda de rodagem, a torcida com um e outro de pé num extasio pleno, tudo adornado pelos brados do narrador o vendo emular um cortador de grama em uma das viragens: “zebra é brincadeira, terra é diversão, grama é que é pra valer”. E quando dava sinal que ia tirar o pé, outra pisada nas zebras, e o baile segue.
E se as voltas fossem um pouco mais? O que acontecia primeiro? Keke suplantaria o aspirante a leão ou alguma coisa no carro entregaria os pontos? Certo foi que o “e se” segue a risca de não jogar e, talvez, essa lacuna foi melhor para alimentar a imaginação dos fanáticos. O segundo lugar foi um baita prêmio no sol escaldante e corou uma verdadeira marcha maluca e beirando a irracionalidade, talvez a mais intensa que um carro de motor turbo teve naquele período da F1.
Enfim, todos respiravam e baixavam a adrenalina, seja com água gelada ou o gole do Möet & Chandon já meio quente pelo tempo no sol. Certo que o pai do Nico não era de poucas emoções, e naquela tarde entregou tudo aquilo que sabia e talvez ainda não soubesse no volante de um F1. Coisa que só os fãs como nós e outros tantos lembram, quase que ouvindo os acordes do Honda V6 telegrafados ponto-a-ponto, curva a curva, intensa e alucinantemente.
Tempos que não voltam mais, como o tipo de piloto que fora o velho Keke, tão louco quanto ousado. Aquela tarde de Kyalami ainda ecoa em quem ouviu, no mais intenso, um turbo de verdade em altos brados num retrato único de limite e loucura.
Que momento!