Micheles…

Pikes Peak, Colorado, 1985…

…e quando ela desceu o morro, com aquele mesmo sorriso maroto e abusado de outrora, ela sabia plenamente o que tinha acabado de fazer: silenciou uns e enervou outros ditos “machões” que, acuados, tinham que admitir que tomaram tempo, desaforo e tiveram as solenes bocas caladas pelo atrevimento de uma francesa.

Falar que saiu elegantemente do bólido teuto da casa de Ingolstadt, após para-lo no ponto inicial novamente, seria exagero de força ante as curvas em aclive que exigiam trabalho físico e mental comparáveis aos computadores mais possantes. Mas ela podia, ela sempre pode mesmo quando lhe apontavam o dedo em desaforo dizendo que “não podia”.

Ela nunca viu um empecilho nem braços rígidos lhe impedindo de entrar num carro e demonstrar a aptidão que tinha atrás de um volante, entre curupeios programados e medidas técnicas milimétricas para tangência, approach e retomada. Seu semblante é calmo, comedido, tal como recebesse as reprovações e dúvidas com a singeleza de um vidro de perfume vindo de sua terra-natal.

Reprovações? A constante de uma pilota. A gente sabe disto como homem e escriba que vê o movimento feminino pedir a merecida passagem nesse transito veloz de um esporte a motor dominado por meus pares. Academias e paparicos não bastam para dizer que “elas podem”. E a carga reprovativa é de anos, baseada em fraquezas, pejorações, discursos desestimulantes e um cabedal eterno de “não, não e não”.

Pudera, a sua geração de lendas do asfalto/cascalho/lama/neve teve de ouvir de uma das expressões maiores deste universo antigo que não admitiria perder para uma mulher. Uma pena que aquele tento de 1982 não caiu na conta da garota francesa. Foram detalhes pequenos que a impediram de tanto, e seria a prova cabal que o gênero nada quer dizer atrás de um volante tendo a capacidade e a habilidade de mudar o mundo.

Essas vidas de “quases” e “e se” talvez sejam constante. E se a vitória viesse? E se aquele tempo fosse mais rápido? E se meu equipamento fosse igual ao do companheiro? A verdade é que desculpas nunca faltaram para diminuir feitos delas. E dela, que não levava desaforo para casa, jogada os cabelos ao vento da usina alemã em tempos de turbos incandescentes e da morte rondando a cada especial, como suas pares em seus riscos assumidos entre a glória e o perigo.

Aquele dia de 1985, se os pensamentos mais nefastos pudessem ser ouvidos, seria mais uma enxurrada de impropérios que a moça de pele bronze e madeixas morenas sepultaria nas curvas que faria morro acima. A sinfonia mecânica das quatro argolas ecoava curva a curva no aclive domada no misto de delicadeza, força e audácia daquela atrevida, abusada, enxerida, exuberante vulcão em convulsão.

Os músculos, numa perfeita sincronia com a mente e os ímpetos, controlavam curvas e cavoucavam a terra fofa destemidamente. Parecia fazer fácil aquele caminho empoeirado que já viu tantos o cavarem atrás de glória de ser o mais rápido colina acima. Ela não piscava, o suor delicadamente a acariciava como prova da concentração sobre-humana de si própria. Curvas, retas, a multidão por cerca-la, a chegada: recorde!

Ela ouviria depois? Ouviria, infelizmente. Mas algum sabido colocou no campo hipotético da imaginação uma frase direta a um dos seus detratores mais veementes, um certo Bobby de uma família abonada do “American Way of Race”: “se ele tivesse colhões, disputaria a descida comigo”. Sendo ela ou não a autora da frase, verdade é que lhe coube direitinho, como uma luva diante de seu jeito entre a suavidade e a força.

Mulher na pista, a suavidade e a força, perfeito contraste que vai além da burra superficialidade dos pervertidos. Ela acelera, briga com o equipamento, tira o limite de si e aguenta o fardo das reprovações. No fim, mesmo sem a gloria, teima em escrever a história de suas pares, as que passaram e as que virão, confrontando o machismo, a presunção cega, as restrições, colocando graxa no lugar do decantado esmalte.

E ela deixou o volante do velho bólido, mas não o peso do seu nome. Peso de um nome que iguala-se a tantas, estas boas teimosas que seduzem pela tenacidade. E quando a encontram, quase como uma reverencia sacra, rasgam-se os preconceitos burros e aperta-se a mão como uma conquista: estamos diante de uma lenda, como tantas, como elas, estas doces valentes.

São tantas, são várias, são Micheles…

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