Eclipse

“Para a Fórmula 1, sua morte foi como se o sol tivesse caído do céu”.

A frase é de Gerhard Berger, companheiro de equipe de Ayrton Senna por três temporadas e considerado o grande amigo do piloto brasileiro. Passados trinta anos de seu desaparecimento, no Gp de San Marino de 1994, reflexões ainda pairam na cabeça de muitos fãs, de proporções igualmente astronômicas.

Senna era o maior astro do esporte. Era o único campeão entre o plantel de 24 pilotos que participariam daquela temporada. Não haviam dúvidas de sua capacidade e ele era considerado o melhor piloto do mundo. Seu grande rival Alain Prost havia se aposentado um ano antes, e era sugerido que ele não teria dificuldades em se estabelecer como o maior piloto da história, vislumbrando a partir da recém parceria firmada com a equipe mais bem estruturada da época a conquista dos títulos que lhe faltavam para ao menos igualar os cinco títulos de seu grande ídolo Fangio.

Seu último ano havia sido memorável, o vice-campeonato pela McLaren Ford. Ninguém jamais imaginaria que, caso uma tragédia novamente viesse a acontecer na Fórmula 1, esta atingisse justamente o piloto mais experiente e mais capacitado do grid.

Um início de campeonato atribulado, com abandono na prova de casa (rodada quando perseguia Schumacher no Gp Brasil) e uma largada ruim seguida por uma batida logo no início da segunda etapa, Gp do Pacífico em Aida, dava a impressão de que o ano seria difícil. Ao chegar em Imola, Senna declarou que o campeonato iniciaria ali. Infelizmente, foi exatamente onde tudo acabou.

Largada do Gp Brasil 1994: quem poderia imaginar que seria a última de Senna em casa?

O acidente de Barrichello nos treinos de sexta-feira e a morte de Ratzenberger no dia seguinte deram o alerta. Há de se supor que não existam forças extrafísicas que venham a influir em carros que rompem a barreira dos 300 km/h em pistas de asfalto, mas de fato aquele fim de semana tinha um clima pesado e parecia ter sido escolhido para marcar indelevelmente o esporte.

Uma largada acidentada, mau presságio. Seis voltas lentas atrás do safety-car (procedimento novo na época) e uma volta apenas para se despedir da história. Sétima volta, batida. Silêncio. Angústia e preocupação. Perplexidade em meio a um grande clima de pessimismo. Seria o fim dali a poucas horas, em uma corrida transmitida ao mundo inteiro com intenso pesar. Informações imprecisas e as televisões do mundo todo noticiando o inevitável. Fim.

Fim de semana do pesadelo: última corrida durou apenas sete voltas

É fato que a morte de Senna representou um marco na história do esporte. Também é verdade que o piloto brasileiro tinha tamanha importância no cenário daquela época que levou a entidade a buscar uma política de “risco zero”, tentando de todas as formas impedir novas tragédias. Com isso, algumas medidas reverberam até hoje. A segurança passou a ser a prioridade. É correto dizer que a Fórmula 1 nunca mais foi a mesma, e o esporte a motor, de certa forma também.

Em Novembro daquele mesmo ano, o país que perdeu uma de suas grandes estrelas pôde testemunhar pela última vez no século um eclipse solar total. Num ano de muitas transformações em muitas áreas, as penumbras que sugeriam mudanças repentinas assustavam muitos daqueles que admiravam o esporte. Senna não teve e nunca terá substituto no coração dos fãs mais ardorosos e mesmo dos mais céticos. Ficaram na memória as 41 vitórias, o recorde de 65 pole position, as inúmeras demonstrações de puro talento na chuva, a velocidade inquietante e a onipresença no imaginário do torcedor que estava tão acostumado a vibrar com a Fórmula 1. Dez anos passaram realmente voando, e tudo foi interrompido abruptamente.

Senna é uma estrela especial no firmamento de pilotos incríveis que a categoria já teve. Entre os grandes, é um dos melhores, e dentre os melhores, é especial. Simples assim.

Pilotos perfilados antes do Gp de Mônaco 1994: primeira prova sem Senna.

Trinta anos se passaram. Apenas ficamos com o imaginário de como poderiam ter sido os anos que viriam. A efeméride convida a ser feita a corriqueira pergunta: “Onde estavas, e o que estava a fazer”?.

Meu relato pessoal: Conhecia esporte a motor fazia pouco tempo. Aquele início de temporada me causou estranheza ao ver o capacete amarelo num carro azul e branco, que antes era amarelo e azul, dominante e imbatível. E o carro verde e amarelo do ano anterior, agora azul e verde, estava rápido demais. Era assim, com cores que meus olhos de oito anos de idade vinham aqueles “carros que passavam rápido”.

Domingos eram dias de escola dominical, ou catecismo da Igreja Católica. Enquanto a professora lia Evangelhos eu estava rememorando ainda a passagem de Roland. “Nossa, esse esporte mata”! Pensava eu. O domingo se seguia com a missa, e um ar estranho tomava conta da igreja. Percebi olhares preocupados. Como Fórmula 1 era algo tão ubíquo como futebol para os torcedores brasileiros, não me espantaria se descobrisse algum rádio a pilha escondido entre os fiéis.

No caminho de volta para casa, continuo a ver olhares preocupados. Ansioso para saber como estava a corrida, procurei por qualquer janela que estivesse entreaberta para ouvir algo. Ao passar pela penúltima casa vizinha, ouço abafado o hino da Alemanha. Confundo-o com o tema da vitória e corro para abrir o portão de casa antes de minha mãe e irmã, que me acompanhavam na caminhada de volta da igreja. Entro na sala, meu irmão mais velho, que sempre foi sério, estava ainda mais e com a mão no queixo continuava a observar o replay. Era o fim da transmissão. Apenas ouço o pesar da voz de Galvão Bueno dizendo para Senna ser forte. Confirmada a preocupação, apenas revejo o replay e, incrédulo, estranhamente já me despeço do piloto que conhecera há pouco mais de um ano. A aflição toma conta das duas mulheres da casa já citadas, que nem nunca gostaram de corridas. Percebo o tamanho da coisa toda e hoje entendo que Senna conseguiu suplantar o esporte em certo grau. Um ídolo do Brasil estava morrendo na hora do almoço na casa de todo um país que o adorava, mudando pontos de vista e afetando em variados graus o pensamento de gente que gostava ou não de corridas.

Quem tem medo do “Plantão da Globo” nem imagina que ao invés de medo, cada entrada do boletim informativo daquele dia era recebida como uma aflitiva e angustiante pancada. A constatação do inevitável. Vem a confirmação. Silêncio na casa. Meu pai, ainda mais austero que meu citado irmão mais velho, ostentava há tempos o boné azul do banco Nacional, marca registrada de Senna, acredito que por admiração. Ele chegaria dali a alguns instantes da feira livre, onde trabalhava nos fins de semana. Era comum nos anos anteriores irmos confirmar a ele o resultado das corridas. Neste dia, tomei a iniciativa de informa-lo de algo que talvez ele já havia ressentido. Enquanto manobra a Kombi verde-abacate ano 73, vejo o rosto do senhor Francisco Felix ficar pálido pela primeira vez na vida.

Sentado na varanda da cozinha, apenas imagino qual seria o futuro do esporte que eu tanto amava, agora sem um dos meus favoritos. Curioso foi notar que, de imediato minha cabeça de criança aceitou logo. Pilotos correm risco e são cientes disso. Os anos seguintes me deram a dimensão do tamanho de Senna para o esporte e para o Brasil, e foi só depois de anos que assimilei o golpe.

Guardo Ayrton Senna com carinho em meu coração de fã do esporte a motor. Tenho um lugar especial para ele. Acredito que assim como estrelas nascem e morrem no firmamento, o sol, astro maior, é algumas vezes subjugado por uma força da natureza, um eclipse, para depois sua imagem e significância voltarem e deixarem a certeza que, uma vez atingido a vida de cada um, lá mesmo ele irá ficar. No infinito.

Para todo o sempre, saudade!

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