Numa certa noite, dentro de um Porsche desvairado pela noite paulistana, um rapaz de cabelos longos e rindo compulsivamente de alguma piada é tomado de susto com um ronco característico.
Quase um sussurro no ar, embora um trovão grave e provocador, driblando o trânsito pesado da redondeza com uma agilidade ímpar. Era o convite para qualquer maluco girar a manopla do guidão até o talo e ouvir aos berros aquele motor despejar tudo que podia nas duas rodas.
A dupla no Porsche alcança o veículo. Logo abaixo do banco, a inscrição que leva brilho aos olhos do jovem de cabelos longos: CB 750 Four, brilhante, refletindo lâmpadas e lâmpadas de carros preguiçosos que a cruzavam diante de sua breve hibernação naquele paradouro.
Quase salivando, o garoto comenta com o dono um qualquer coisa na conversa e, depois, lança a braba no debate: “bora pra um pega?”
O motorista do Porsche ri nervosamente, ele conhecia o lado selvagem do carona com uma moto nas ruas. Ele e tantos outros parceiros que o viram enlouquecer a vizinhança com acrobacias, empinadas, dribles e curvas perigosas, beirando um tombo que podia significar morte.
A motocicleta, este veículo que estimula o lado intrépido de qualquer cidadão, parece conter esse elemento libertário dentro de si. Desde as mais modestas e trabalhadoras do dia-a-dia as mais possantes e velozes das pistas, o convívio com o vento e a sensação de liberdade andam, por vezes, ladeadas com o risco e a morte, sobretudo aqueles que não conhecem seus limites.
E o garoto de cabelos longos conhecia? A roda gritava seu apelido febrilmente antes do pega: “Jacaré! Jacaré! Jacaré!” Ele acelerava uma outra moto do mesmo modelo que tinha pego emprestado de outro amigo daquela noitada olhando hipnotizado o trabalhar dolente dos quatro cilindros da 7 galo.
Parecia uma daquelas largadas… e que largadas! Quando teve equipamento inferior, ele barbarizava como podia. Andava de moto desde jovem, entre as peraltices das ruas e as glorias das pistas. O jovem Johnny Cecotto o viu correr e subiu ao pódio com ele. Kent Anderson, um dos maiores daqueles tempos, também sentiu na pele o abuso que aquele rapaz podia fazer lado-a-lado numa reta.
Ossos quebrados, cilindradas a menos, moto a menos, para ele era questão de aprender como a máquina se lidava e vamos à largada. Não era anormal vê-lo sair com um troféu na mão e um sem-número de ídolos e colegas de equipe o carregando pelos boxes de Interlagos ou qualquer outra pista como um ídolo do olimpo, fazendo chover em terreno árido.
O rapaz volta a olhar para frente, no balançar de um lenço, a largada do pega. Outra de suas peripécias, outra de suas audácias nada calculadas. A velocidade subia a medida que a adrenalina fervia nas veias, na sanha de chegar na frente e ser o rei da noite diante da temerária 7 galo.
Ele nem lembrava o mesmo que tinha se quebrado todo em outra de suas estripulias nas ruas. Ignorava as broncas do chefe de equipe onde corria, dava de ombros pro perigo mas não podia ignorar as idas ao hospital. A última quase lhe custou a carreira e a sanidade, e depois de outra vitória contra o limitado maquinário que tinha, prometia que seria outro, mais focado, mais responsável.
O vício da adrenalina e velocidade era maior. E num movimento brusco, o jovem encontrou seu momento final. Avenida Cidade Jardim, em frente ao Restaurante Pandoro, a 7 galo dribla um Opala pela esquerda. O motorista, assustado, manobra para a direita. O jovem não pode parar a tempo, entra na traseira do carro, morre ali mesmo.
Dizia ele mesmo que queria “morrer em cima de uma motocicleta”, e assim, morbidamente, seu desejo se realizou. A família devastada, uma cidade para com 2 mil motociclistas seguindo o cortejo dias depois, com cravos adornando-lhes os guidões, na despedida solene a um ídolo, ao “rei dos motoqueiros”, como diziam os jornais.
Aonde ele poderia parar? Onde ele poderia mais chegar? O “excesso de liberdade” o privou de, quem sabe, nos dar algum rumo no motociclismo internacional, onde só teríamos brilhos esparsos e teimosos anos depois.
E alguns dias depois, já repousando na campa de um cemitério silencioso, o tão falado Jacaré dos amigos de moto era lembrado, em voz solene e forte, por um também saudoso Hélio Ribeiro no seu horário vespertino na Bandeirantes, sem texto pronto e tomado, na fala, pelo mesmo “excesso de liberdade” que move o pensamento do motociclista, das curvas da cidade e das pistas do mundo…
Era agosto de 1975, e Carlos Pavan, o Jacaré, morria por “excesso de liberdade”.