Hockenheim, a pista alemã entremeada às árvores da Floresta Negra em Baden-Württemberg, com longas retas, chicanes agudas e convidativa ao máximo de rotações por minuto guardou muitas emoções e surpresas desde que estreou em 1970 na Fórmula 1.
Revezando com Nurburgring, que se mostrava cada vez mais ultrapassada para os padrões de segurança e principalmente pelo ocorrido com Lauda em 1976, a nova pista abrigou muitas disputas e desafios aos pilotos, apesar de causar o infeliz encontro com a fatalidade de Depailler em 1980 e claro, ter sido palco da trágica morte do mito Jim Clark, na corrida de Fórmula 2 que vitimou o escocês em 1968. Ainda que igualmente insegura como sua antecessora, alguns pilotos pareciam se sentir à vontade com a claustrofóbica jornada de intermináveis retas percorridas em longos trechos cercado de árvores, em uma volta de quase sete quilômetros.

Um dos personagens mais identificados com a citada pista é o austríaco Gerhard Berger. Nascido no vale de Wörgl, cercado de montanhas, lar dos famosos tiroleses (habitantes da região do Tirol, na Europa central, muito rica em cultura), na fronteira com a Baviera alemã. Portador de um espírito propenso a aventuras, era uma criança extremamente ativa. Segundo o próprio conta, participou de inúmeras peripécias em sua infância (subir nos trolleys das estações de esqui com quase 10 m de altura e saltar em direção ao chão em voos cegos era uma delas), e talvez esse espírito destemido o impulsionou a buscar cada vez mais a velocidade.
Ele não tomou parte no habitual percurso inicial dos pilotos profissionais, o kart. Ele diz que sua astúcia natural e reflexos deram conta de fazê-lo subir nas categorias inferiores e chamar a atenção de pessoas como Helmut Marko, que junto à ATS BMW o fizeram estrear na categoria máxima do automobilismo em 1984. No final daquele ano, um susto: conduzindo seu BMW 323i pelas estradas de Salzburg, foi atingido por trás numa rodovia. Sem cinto de segurança, voou para fora do veículo e só não teve complicações maiores porque teve a sorte de ter dois médicos no local do mesmo acidente que prontificaram seu resgate. Cirurgia e recuperação longas.

De Benetton BMW e pneus Pirelli, seu talento natural encontrou o prêmio da primeira vitória numa corrida sem paradas no pit, naquela tarde ensolarada no México em 1986. Convidado para substituir Johansson na Ferrari, conta os detalhes em sua biografia: encarou Enzo numa sala escura da famosa sede com persianas vermelhas, e foi o último piloto a ser escolhido pessoalmente pelo comendador. No autódromo do litoral português, uma combinação de pilotagem agressiva e o fino acerto que finalmente amansou a F187 parecia que resultaria em vitória, mas uma rodada embaraçosa a três voltas do fim foi um duro golpe. Suzuka e Adelaide ao menos renderam duas merecidas vitórias, fazendo-o cair nas graças dos tifosi, ainda mais levando-se em conta o que viria no ano seguinte, a vitória em Monza 1988: na única corrida não vencida por um carro Mclaren, ele manteve Alboreto nos espelhos após o abandono de Senna para erguer o troféu mais importante de sua passagem pela Ferrari, poucos dias depois da passagem do comendador.
1989 iniciou da pior forma possível: o badalado companheiro Mansell vence logo na estreia, com o carro equipado com câmbio semiautomático (primeira vitória de um carro na F1 com essa característica). Em Imola, segunda etapa daquele ano, um spoiler dianteiro falho o traiu, e passando reto na Tamburello, esteve envolto em chamas por dezesseis segundos. Costelas quebradas e queimaduras nas mãos, mas lá estava ele de volta quinze dias depois, para lidar com Mansell e sua incômoda rápida adaptação aos ares de Maranello.

Tamanha pressão acompanhadas de outros azares marcariam ainda aquele ano, como o ocorrido na chicane Clark, em Hockenheim em seu primeiro encontro significativo com a Floresta. O carro passa pela zebra, alça voo e aterrissa quase que de bico. Um susto que certamente colocou mais pressão naquele desastrado ano. O acordo com a Mclaren e a vitória no Estoril, vingando-se do erro cometido dois anos antes na mesma pista mais tarde foram o alento que ele precisava.

Os três anos ao lado de Senna na Mclaren deixaram uma marca em Berger, que parecia conformado com a derrota. Ao final nem transparecia o mesmo entusiasmo de quem bateu o brasileiro no qualy logo na primeira prova (Phoenix, 1990). Um papel de fiel escudeiro se desenhou ao longo dos anos, e a vitória “dada” por Senna em Suzuka 1991 não foi tão bem aceita assim. Segundo ele, foi uma forma de Senna mostrar quem realmente mandava na equipe. A revelia de Berger se deu ao fato de não ter sabido do combinado entre o brasileiro e Ron Dennis. Além disso, Berger teve problemas com o escapamento de seu carro, e resolveu ficar para trás naquela prova para salvar o pódio. Ainda que tenha havido esse embaraço, a amizade entre os dois não ficou abalada, e Berger conquistaria duas vitórias no difícil ano seguinte, em que toda a potência do motor Honda e a estrutura da Mclaren não foram o bastante para o domínio de Williams, Renault e Mansell.

De volta à Ferrari para as temporadas 1993 a 1995, era sabido que o intervalo de defasagem tecnológica frente às equipes inglesas faria do seu trabalho um exercício árduo de paciência e dificuldades, em meio ainda à desconfiança do público em geral se aquela velocidade de antes teria sido subjugada definitivamente pela convivência com Senna.
Em 1993 a corrida em Interlagos, segunda corrida daquela temporada reservaria dois momentos de extremo perigo: a batida no muro da saída da curva do sol, nos treinos de sexta feira (que de tão impactante resultou no batismo do local como “muro do Berger”, ainda que momentaneamente) e principalmente o enrosco com Michael Andretti na largada da prova no domingo, que poderia ter resultado em coisa muito pior para os dois.

Seguiu-se um ano de muito trabalho e poucos resultados. Novamente Hockenheim reservaria momentos de emoção. Uma disputa visceral com a Ligier-Renault de Mark Blundell pelo quarto posto. Duas voltas lado a lado, com vinte e dois cilindros urrando e pneus quase se tocando ao longo de duas voltas em meio à floresta. Um momento absolutamente incrível para os fãs da categoria.
O fim do ano chegara e com ele a tradicional prova portuguesa antes das rodadas finais, que antes já tinha dado alegrias e tristezas reservou um momento de absoluto pavor: logo após o segundo pitstop, ao sair dos boxes, o sistema da suspensão ativa interpretou erroneamente o desnível da pista e baixou o carro de forma repentina, lançando Berger direto ao pelotão de carros que passava a pleno na reta dos boxes, a mais de 300 Km/h. Por sorte Derek Warwick, que vinha a pleno na reta não o acertou com sua Footwork, ainda que é possível sugerir que o inglês sequer teria tido tempo de reagir, num dos momentos mais assustadores da década.

Isso tudo aconteceu uma quinzena de dias depois do pavoroso acidente em Monza, no final do treino classificatório, quando ao tentar desviar de Alesi, que estava imprudentemente desatento e acenando ao público, Berger foi de encontro à barreira de pneus após a reta que antecede a Variante Ascari, num acidente potencialmente fatal dada a velocidade e dinâmica da batida. Foram dias em que ele realmente precisou gastar os créditos com a sorte para sair ileso.
1994 chegaria e com o fim das ajudas eletrônicas que colocavam o grid em considerável desvantagem frente às Williams, a Ferrari viu uma oportunidade surgir. Ainda com o lendário V12 alimentando os bólidos, logo nas primeiras provas a Scuderia enxergou uma boa possibilidade de ser competitiva. Berger conseguiria um segundo lugar logo na segunda prova, em Aida e na fatídica prova em Ímola naquele ano, experimentou o duro golpe de perder ao mesmo tempo um compatriota (Ratzenberger) no sábado e o amigo Senna no domingo. Após o acidente, Berger alinhou o carro na segunda posição do grid e logo ultrapassou Schumacher. Vinha fazendo uma boa prova até abandonar tempo depois. Ele relatou que teve uma estranha sensação de que o carro teria um problema na suspensão traseira e em sua biografia disse que a parada nos boxes foi por pura intuição. Encostou e antes de descer do carro já recebia de Jean Todt um leve toque no ombro: “Sabia que você queria parar”. Nos boxes, após abandonar, sentiu que já estava perdendo o amigo, mesmo sem saber da gravidade de tudo o que estava acontecendo quilômetros dali, no Hospital Maggiore de Bolonha. Ele foi o único dos pilotos a visitar e ver Ayrton ainda com vida no hospital. Veio ao Brasil e esteve na primeira fila dos que carregaram o caixão de Senna. Foi um gesto marcante que gravou a grande amizade feita pelo brasileiro nas pistas.

Quinze dias depois, estava novamente no pódio de Mônaco, depois de anunciar numa coletiva de imprensa que realmente pensou em parar, mas deveria seguir com a paixão que o arrebatou desde criança. Essa mesma paixão continuou a motiva-lo até um novo encontro com Hockenheim, desta vez ainda marcado pelo fato de estar acompanhando em paralelo um extenso e árduo julgamento sofrido pelo pai, o empresário Johann Berger, que esteve envolto em negociações com pessoas vigiadas pelo fisco austríaco.
Um bom desempenho nos treinos o encheu de esperança. Uma corrida com diversos perigos, a começar pela largada com vários carros se acidentando, uma tensa batalha entre manter a velocidade e apostar na fiabilidade do beberrão V12 – naquele ano o reabastecimento havia voltado, e num momento histórico da categoria, Jos Verstappen entra para reabastecer e tem seu carro envolto em chamas. Após o abandono de Schumacher, coube a Berger rasgar as retas e contar as voltas para dar à Ferrari a primeira vitória em três anos, num momento em que finalmente 1994 dava motivos para os fãs sorrirem.

O ano de 1995 seguiu de forma decepcionante. Pelo menos aliviado pela absolvição do pai, foi um ano de poucos bons momentos, apesar de ter chegado a ser declarado vencedor do Gp Brasil, prova inaugural daquele ano, devido à desclassificação dos pilotos com combustíveis Elf (posteriormente essa decisão foi revogada). Ao longo do ano, teve de amargar uma negociação frustrada com a Ferrari para se manter na equipe para 1996, quando era claro que Schumacher já estava de malas prontas para Maranello. No encontro anual com a Floresta negra, um quarto lugar foi o melhor que poderia almejar. Ao fechar com a Benetton para 1996, ladeando Alesi novamente, encontrou uma Benetton perdida sem a liderança de Schumacher, e apenas dois pódios e uma série de abandonos até chegar na primeira chance real de vitória, justamente em Hockenheim, quando estava presente na primeira fila ao lado do piloto dominante daquela temporada, Damon Hill.
Na prova Berger usou de toda a sua experiência para tentar, com pneus desgastados resistir à pressão de Hill, que havia feito um pitstop a mais. Faltavam apenas três voltas para Berger receber a bandeirada e o troféu de primeiro lugar após dois anos, mas ao sair da chicane Clark, a nuvem de fumaça do Renault V-10 encobriu o perseguidor Damon Hill, e ali se esvanecia também a chance da Benetton fazer valer algo naquele complicado ano de transição.

Berger conseguira ainda ao longo daquele ano a renovação para mais um ano trabalhando para a casa de Enstone. A Fórmula 1 não tinha dúvidas que o bom FW-18 daria sequência com um excelente chassi para o ano seguinte, e as equipes que não haviam conseguido marchar próximo das Williams conseguiriam pelo menos diminuir a distância, entra elas claro, a Benetton, que contaria com o chassi totalmente desenhado por Nick Wirth, sem a caneta de Rory Byrne que, a pedido de Schumacher, integraria desde o semestre anterior o time técnico de Maranello.
Um início de ano promissor e à frente de Alesi animou o austríaco, mas ao chegar no fim de semana para o GP canadense, uma forte dor de cabeça o obrigou a visitar especialistas. Uma forte sinusite, aliado a inusitado problema o atormentou: alguns dentes molares estavam trincados e isso acarretou num problema inflamatório que só podia ser resolvido cirurgicamente. Berger explicou: “Muitos anos utilizando capacetes apertados por opção me faziam, involuntária e inconscientemente, morder com muita força os dentes” (e imagine-se que no decorrer de anos percorrendo pistas a altas velocidades, essa pressão devia ser constante), o que causou a ausência dele ainda nos dois GP’s seguintes: França e Inglaterra. Isso promoveu o seu conterrâneo piloto de testes Alex Wurz, que conseguiu na etapa inglesa seu primeiro pódio.
Na vida pessoal, Berger sofreria o mais duro golpe da vida: se preparando para retornar ao campeonato, soube por telefone entre os GP’s da França e Inglaterra que o avião que seu pai Johann estava havia caído a poucos quilômetros da sede da empresa de propriedade da família. Ligações telefônicas aqui e ali, um retorno apressado de carro para a Áustria e a constatação ao encontrar amigos do pai chorando no aeródromo. Era verdade. Ele havia acabado de perder seu pai, maior fã, conselheiro e admirador. Angústia, incerteza e tristeza tomaram conta de sua vida justamente no momento de retornar às pistas.

Após cuidar dos funerais, Berger rumou à sua conhecida Floresta Negra. Sem saber do futuro, amargurado no presente e de luto com o passado recente, simplesmente varreu o fim de semana. Uma pole incontestável, uma corrida dominante do início ao fim, com direito à volta mais rápida e uma bandeirada descrita por ele como a única vez que chorou de emoção dentro de um cockpit. Com a clara sensação de dever cumprido e superação frente a uma tragédia pessoal, Berger contemplou a aposentadoria a partir dali, e assim o fez. Finalizou em quarto em Jerez, naquele embaraço entre gentileza e clima de fim-de-festa entre Williams e Mclaren (quase beliscou um pódio em meio à indecisão de Villeneuve nos metros finais ao ceder a posição a Coulthard) e deixou a F1 para sempre, totalizando: 210 gps, 10 vitórias, 48 pódios e 21 voltas mais rápidas.

Após a carreira de piloto, esteve envolto no retorno da sua primeira “madrinha”, a BMW. A fábrica bávara equipou as Williams entre 2000 e 2005, e Berger era seu diretor esportivo. Embora menos intensa, sua presença no paddock servia para azeitar o clima engessado e sisudo sempre presente da categoria.
Imola 2004 marcou o décimo ano da perda de seu grande amigo Senna, e ao desfilar com a Lotus Renault 97T preta e dourada horas antes da largada, trouxe nostalgia e emoção ao público. É emocionante ouvir dele que, ao passar pela Tamburello, pôde ver fiscais que o ajudaram em seu acidente de 1989, e muitos deles estavam ali também cinco anos depois naquela tarde sombria de 1994…

Empresário astuto como seu pai, adquiriu em 2006 metade da equipe Toro Rosso, uma subsidiária da então iniciante Red Bull, que havia estreado um ano antes. A Toro Rosso se instalou nas garagens da Minardi em Faenza. 2008, trinta anos após vencer para os tifosi a corrida logo após a passagem do comendador, vence com Sebastian Vettel numa tarde chuvosa no costumeiro Parco di Monza, naquela que seria a primeira das 53 vitórias do futuro tetracampeão.

Tiroleses são conhecidos por ter um espírito destemido de aventura. Não se intimidam com o desconhecido e partem em busca da descoberta sem medir esforços, sem deixar de lado um temperamento cômico e lúdico. Berger se lançou cegamente na paixão pela velocidade, e tal qual um legítimo tirolês, ao se defrontar anualmente com as gigantescas e intermináveis árvores daquela densa e escura floresta, não se intimidou e fez o seu melhor, mesmo quando teve de enfrentar as adversidades da vida.