À Claudio e Carlos

Com sabemos pouco do nosso esporte a motor. Permeados por estas memórias efêmeras agarradas ao básico e transformando quase todo o resto em galhofa ofensiva ou cercados por este permanente estado de idolatria que ufaniza os ídolos e torna o universo ao redor mercantilizado e objeto da lente de algum influencer.

As vezes, sorrio estando em volta de amigos que, assim como eu, tem este olhar Lado B tão apurado que, nas lacunas, nos permite reverenciar um sem-número de homens e mulheres de história mais respeitável do que a efemeridade de outros. Nem sempre, estes são campeões e nem se é necessário, basta apenas enumerar feitos que uma prateleira já se enche e acanoa-se facilmente.

Recentemente, o trabalho do Entusiastas Sobre Rodas (em que toma parte o amigo do G&M Rodrigo Carelli) me fez mergulhar numa das memórias mais impressionantes e tão esquecidas de nosso motorsport: dois brasileiros, uma VW Brasília e uma aventura que ultrapassou os níveis da competição para deixar lições e momentos à seus autores e reverencias enormes em nossos corações velozes.

Se no universo da velocidade, uma prova de longa duração e distância no campo do Rally como o Dakar tem a dose de dificuldade que tem, em um cinquentenariamente distante 1974 – onde fotos instantâneas saiam em Polaroid e a tecnologia nos limitava ao vinil, K7, TV a cores e máquina de escrever – cruzar vários países, em todas as condições de clima, politica e terreno, era o script perfeito para um filme.

Quando o grupo avisou que a próxima entrevista seria com Claudio Mueller, travei por um momento: “seria ele mesmo?” A dúvida me perseguiu até o dia do bate-papo, destes que eles organizam com horas e horas de duração e muita história boa, a verdadeira e autêntica homenagem aos reais pioneiros do nosso automobilismo, como este gaúcho invocado e polivalente o é.

Mueller foi um destes desbravadores das quatro rodas, sobretudo vindo da turma do mate e do churrasco, que fazia da velocidade a sua Revolução Farroupilha particular. Acumulou conquistas e autênticas peripécias nos bólidos que conduziu, seja viatura turismo ou monoposto, asfalto ou até mesmo terra e cascalho, competindo em Rally embora não sendo do gosto do piloto a vida tomando poeira e acelerando de lado nas estradas vicinais.

Mas mesmo com a idade de um simpático tio historiador, o “professor” responsável por formar grandes nomes para nossas pistas mostrava durante a conversa o ar de bom maluco: despojado na fala, risonho e sério nas partes sérias. Foi ai que, depois de esperar como fã na fila do show da banda, ele caiu no assunto que aguardava: o Rally da Copa do Mundo de 1974, de Londres a Munique.

Bem… sobre isso, não vou falar uma vírgula, pois a história se torna ainda mais saborosa de ouvir se contada por quem a viveu. E assim dizia o professor:

E que podia dar errado?

Na boa e no cerne de tudo, não deu nada errado. Foram fatos e acontecimentos que fizeram parte de todo o processo. Uma história digna, de fato, de roteiro de filme, mas que talvez não deva ser para o conhecimento de qualquer “produtor de groselhas” (como vi na internet falando sobre este assunto), mas de quem verdadeiramente rende homenagens a esta proeza.

Não se trata apenas de uma ousadia veloz. As lições e “invertidas” da dupla nos caminhos tortuosos da competição fizeram o 16° posto final ser um detalhe apenas. Eles chegaram ao fim e levaram consigo, dentro do diminuto porta-malas dianteiro do Brasília, mais do que um país que mal sabia da aventura insana entre a Europa e o deserto.

Mueller e o navegador Carlos Guido Weck levaram lições preciosas para si próprios, superaram provações quase impossíveis, deram o tapa na arrogância e prepotência européia comum (não é, Striling Moss?) e venceram à maneira deles e dos ousados botas nacionais dos tempos a lenha. De amigos à apertos, paisagens únicas, lágrimas e risos vitoriosos.

(Blog do Sanco)
Do Brasilia original restou apenas o capô, que serviu de modelo para a réplica construida e que, hoje, repousa no Museu do Automobilismo Brasileiro, em Passo Fundo (RS) (Blog do Sanco)
(Blog do Sanco)
O sorriso saudoso de Claudio Mueller no volante da réplica. Memórias de uma odisseia única para uma vida intensa (Blog do Sanco)

Repito: sabemos pouco de nosso esporte a motor e temos preguiça para tanto, imersos nessa falsidade do “torcer para ganhar”. As melhores histórias do nosso passado veloz ainda estão por se descobrir e registrar, e felizmente o professor abriu o baú, feliz de quem realmente curte para bater palmas no fim de um relato deste quilate.

Em 1974, o futebol não trouxe a Copa daquele ano, mas a história maior não veio correndo na grama. Nas palavras da Volkswagen em algum comercial perdido no passado: “eles saíram para dar uma volta, e voltaram campeões”.

Claudio e Carlos, o nosso tributo e gratidão!

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