“Todo mundo tem uma história pra contar deste dia”
As vezes, nas rodas de conversa com os “mais antigos”, sempre me ocorre esta frase. Nem todo mundo tem memória boa para chegar com ela lá atrás, mas há quem tome por referencia algum acontecimento próprio para recordar uma passagem marcante na vida de um todo.
Talvez seja esta a forma que muitos tem para explicar, quase que enaltecer, um momento que represente o “mix de emoções” vivido. Este termo tão em moda nos dias que vivemos talvez se explique nestas recordações que vão atrás de detalhes e sensações há tempos vividos tão intensamente.
Imagine o brasileiro médio, imerso nos rodeios dos acontecimentos entre 1984 e 1985, quando um país inteiro ansiava ser o protagonista das próprias escolhas e decidir pelo próprio presidente. Dos grandes comícios a frustração da não-aprovação por parte dos excelentíssimos representantes, na grande ciranda das Diretas.

Passa-se quase um ano até que um mineiro da pequena e pacata São João Del Rey veste a roupa dos manifestantes da praça da Sé e faz da campanha própria à Brasília o recado simples, honesto e direto: “esta é a ultima eleição indireta”, e o país entende que 21 anos de repressão e peso ditatorial vão chegando ao fim.
Mas a vida é bem mais que a política do Jornal Nacional, dividida entre os bate-rebate brasilienses e as inúmeras tabelas da SUNAB com os preços dos alimentos para o dia seguinte. Na parte esportiva, você exulta com dois brasileiros alucinados levando o coração de muitos há mil por hora.
Um Piquet campeoníssimo atrás de outras glórias. Um Ayrton Senna que muitos ainda faziam incluir um “da Silva” e que não passava de um relâmpago fenômeno tendo em mãos um carro cuja cor já fizera o país sorrir em outros tempos. Aquele 1985 começava com sorrisos na frente da TV, esquecendo da inflação em galope e dos corres de um dia de trabalho pesado.
Eis que o mineiro, numa explosão raramente vista no cercado candango, fatura o pleito interno e leva a loucura uma multidão do lado de fora do escrutínio. O jovem Luiz Fernando Silva Pinto, empunhando o microfone global na mão, sorri esquecendo a postura de um jornalista alheio. Era um brasileiro tão feliz quanto os outros esquecendo o rito.
Parecia que o Brasil nascera de novo em um estalo. Ninguém fazia ideia se o sorridente mineiro ia dar conta do recado, mas saber que algo novo aconteceria depois de 15 de março daquele ano era quase uma surpresa louca por saber o desfecho. Quisera não sabermos, pois um dia antes dos foguetes, o Hospital de Base de Brasília fez um país inteiro virar os olhos aflito: o mineiro de São João Del Rey estava internado.
A novela nacional cortava os dias com um roteiro tão dramático e intenso quanto o que os 26 botas estavam para presenciar no diluvio lusitano, segunda parada do mundial de pilotos daquele ano. A tensão permeava até mesmo o ambiente festivo de semanas antes, quando a cabeça do torcedor médio se dividia entre contar tempo de volta com contagem de creatinina e potássio.
O 21 de abril daquele 1985 não era nem sinal da metade de um ano, mas valia para tanto. Rock, musica, esperança… tristeza, aflição e sangue escorrendo lentamente nas veias de um mineiro na mesa de operação. E alheios, na confusão mental de um país todo, 26 motores turbo faziam tremer os pingos de chuva teimosos que caiam nas carenagem antes do apertar de botão de Derek Ongaro.

O jovem Senna parecia enaltecer a chuva que tombava vigorosa no litoral portugues. Era o que melhor domava a carruagem negra mesmo com mil e quantos fossem escapadas de curva a curva domando a besta-fera turbinada com reflexos apurados. Via em cada virada a mescla do homem feito impositor das condições e anseios à equipe com o menino filho de um industrial sonhando em voar no chão.
O sonho chegou encharcado, frio e perigoso. Ayrton, enfim, era o melhor entre todos de um fim de semana pela primeira vez. Arrebatado, arrancou os cintos e parecia querer sair do Lotus a cada soco no ar. Na chegada ao parque fechado, o sorriso aliviado de Peter Warr era um doce recado: “você conseguiu!”

Um raro momento de alívio ao brasileiro médio. Enquanto vibrava no sofá e virava o churrasco de domingo comentando com todos sobre aquele patrício voador (ou nadador, como queiram), havia quem esperasse alguma nota mais sobre o presidente moribundo, que dias antes aparecia numa foto quase sepulcral, discretamente sorrindo e rodeado de médicos.
Vitórias são alentos, um motivo para relaxar e extravasar ao mesmo tempo. Quando os problemas do dia e a tensão subsequente pareciam nuvens ruins passageiras como aquelas no céu português que tornavam o fim de tarde no Restaurante O Faroleiro, na praia do Guincho, um pouco mais frio e molhado.
Esquecendo o tenso expediente anterior, os gajos descontraíam em festa, conversas animadas, risadas. Entre uma garfada e outra em algum prato despretensioso de frutos do mar e o gole de um bom vinho, todos exultavam o feito do Becão, nadou como um pato e colocou mais um tag no já laureado preto-e-dourado anglo-francês.
Até um telefonema bater insistente no balcão. Já eram umas 18h, perto das 22h no Brasil, e o aviso quase solene: “o presidente está morto”. Fazia pouco tempo desde o comunicado lido em tom firme e sério por Antônio Brito que não deixou mais o brasileiro dormir, nem mesmo com o gosto da vitória ainda sentido pela turma no restaurante.
Nos dias seguintes, o tento de Ayrton era restrito ao caderno esportivo quase que protocolarmente. E na TV, a mesma imagem corria o país: a do povo baleado, dos ritos protocolares, da peregrinação da cosmopolita Brasília à pequenina São João Del Rey, embalada pelo “Coração de Estudante” mais triste já ouvido na voz do Bituca.
Ainda há antigos, aqueles vívidos daqueles tempos, que vão recordar tão bem e detalhadamente como foram os momentos entre o soco no ar de Senna e o fechar da campa de Tancredo Neves. O mix de emoções que reúne quantas histórias possíveis podem ser recordadas segue sendo contado e recontado, como uma passagem dolorida de uma juventude, um recém-casar, um crescer e envelhecer.
E você, que história conta daquele 21 de abril?
A caneta está com você.