Do que são feitos os sonhos

A sexta etapa da temporada 2025 da MotoGP, o Grande Prêmio da França, disputado no tradicional circuito Le Mans Bugatti tinha reservado em seu destino uma das provas mais caóticas da história da categoria.

A recente alteração nas regras para troca de moto antes dos procedimentos usuais de largada para quando as condições climáticas necessitassem disso acabou por deixar o cenário absolutamente imprevisível, tal qual o clima daquela região.

Zarco cruza a linha de chegada. 19 segundos sobre Marquez

Muitos pilotos optaram pela troca de moto, por conta das condições do asfalto fazerem sugerir que era um bom negócio apostar num cenário de pista seca, e outros optaram por apostar que a chuva chegaria dali a instantes, o que acabou por acontecer.

Nesta situação, coube a Johann Zarco, pilotando a Honda LCR, que optara por largar de pneus para chuva, se aproveitar da situação. Com as trocas, mais da metade do grid acabou penalizado ainda com dupla volta longa, permitindo a ele capitalizar, subindo posições e partindo para uma improvável e histórica vitória: depois de 71 anos, um francês voltava a vencer o GP caseiro, e de quebra, impediu a quebra do recorde da Ducati de vitórias consecutivas de uma marca na categoria. Honda e Ducati detinham o empate desta marca (22 vitórias).

Zarco no pódio, ladeado por Marquez (esq) e Aldeguer (dir).

Há que se ressaltar ainda que o francês obteve essa façanha em grande estilo: mais de 19 segundos na frente do segundo colocado. Ninguém menos que Marc Marquez, tido como especialista em piso molhado, além de ter conseguido o feito num final de semana que seu compatriota Fabio Quartararo roubara (justamente) todos os holofotes e atenção da torcida por ter obtido a pole position. Ao final, os mais de 300 mil (!) franceses que lotaram a lendária pista mal podiam acreditar em tudo o que havia acontecido.

Zarco é o que se pode dizer de uma personagem mais do que improvável no cenário da MotoGP. Único bicampeão da categoria intermediária Moto2 (2015-2016), chegou no ano seguinte na categoria principal pela sempre competitiva equipe satélite Tech3, à época ainda equipada com as Yamaha M1 e já havia deixado uma boa impressão, com atuações que davam a entender que ele seria um dos ponteiros em pouco tempo. Uma desastrada ida à KTM na temporada 2019 quase que pôs a carreira a se perder de vista, pois nem a moto se mostrara uma boa aposta nem tampouco ele teve a paciência de se adaptar e desenvolver o potencial técnico que ela demonstraria anos depois. A situação chegou a ser tão insustentável que ambas as partes optaram por rescindir antes mesmo do fim daquele ano.

Sua primeira ida à equipe de Lucio Cecchinello se deu ainda ao final de 2019, tomando o lugar do lesionado titular Nakagami. Sua adaptação às Honda também sinalizava que havia um árduo caminho pela frente e somente três provas não foram suficientes para se tirar conclusões de ambas as partes. No conturbado ano de 2020, consegue um contrato com a Esponsorama, equipe privada que corria com Ducatis GP19, de um ano antes. Na terceira etapa, obtêm a pole e um pódio, o que lhe abre a oportunidade de se juntar à Pramac, equipe satélite que corria com motos Ducati atualizadas, sendo companheiro do então promissor futuro campeão Jorge Martin. Uma temporada sólida, com a pole do GP da Alemanha e quatro segundos lugares, finalizando em quinto na classificação geral. Novamente quatro pódios na temporada seguinte e um oitavo lugar garantiram sua permanência para a temporada seguinte.

Sua tradicional comemoração, o backflip, diante de uma torcida em êxtase

Sua tardia primeira vitória viria no seu 120º GP, na Austrália, em Phillip Island (2023), vindo espetacularmente de quinto para primeiro nas voltas finais, aproveitando-se dos melhores pneus. Seu feito foi de forma tão inesperado que mesmo La Marselleise acabou por não ser executada no pódio, o que não impediu o carismático francês de canta-lo à capella. Finaliza a temporada em quinto.

Seu retorno à LCR não foi dos melhores. A Honda, em ininterrupta rotina de dificuldade com a RCV213V buscando melhoras não permite a Zarco grandes atuações, obtendo ao final da temporada um modesto 17º na classificação geral. Esta temporada de 2025, embora tenha apresentado sinais promissores para a moto japonesa não fazia supor em momento algum que Zarco poderia roubar a cena e obter novamente uma vitória. Honestamente, sua carreira, de um modo geral parecia avistar seu fim de forma cada vez mais concreta, dada ainda a sua idade (34 anos), sendo o mais longevo dos pilotos do grid. Apesar disso, seu mais recente triunfo o coloca em posição de negociar uma vaga para a equipe oficial para as próximas temporadas

Neste GP caseiro, o francês havia levado sua mãe (no dia das mães) pela primeira vez a uma prova. Sua cena junto aos pais comemorando o feito histórico ficará por muito tempo marcada na mente dos fãs. Ele ainda disse, após a vitória que havia sonhado que choveria e que ele venceria a prova. Mal sabia ele que o produto do seu subconsciente seria materializado numa saborosa realidade dias depois.

A comemoração junto aos pais e à equipe LCR. Recorde da Ducati foi impedido justamente pela Honda!

Zarco é uma personagem única no paddock. “Moteiro”, gosta genuinamente de andar sob duas rodas e entende e respeita bastante a história da categoria. Sua trajetória improvável, de erros e acertos, infortúnios e momentos inesperados mostra aos fãs do esporte a motor que existem coisas que, ainda que pareçam impossíveis de uma forma ou de outra ocorrem quando também menos se espera, mesmo que seja em meio ao mais extremo caos.

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