O metier do automobilismo exige seus batismos…
Vento, fogo, gasolina, etanol, óleo, champanhe. Coragem, sangue nos olhos, frieza, suor nas mãos e aquela ironia de inventar termologias no rasgar das curvas ou no beliscar ríspido das zebras.
Quando era garoto, o fim de semana do GP do Brasil era uma festa de deixar mãe e pai irritados: o filho deles ficava colado na TV degustando da pura história da categoria-rainha até o momento da largada, no disparar tresloucado do mundo na nossa pista maior, cortada pelo frio de Guarapiranga.
E aqui, seria criminoso restringir-me a F1 apenas. Lembro de tudo que corre velocidade nas veias, das pistas e categorias, dos pilotos, personagens, curvas, momentos, tudo que me permeia essa cabeça-de-gasolina desde os três tenros anos de idade, no divã de casa, imaginando etapas enquanto os botas raspavam rodas entre si pelo mundo.
No caminho para lá, o coração ia meio que acelerando aos poucos. Distraído pelo conversê e pelos contrastes paulistanos, interrompido pela secura daquela emulação de Renault do lendário Ragnotti. Os quilômetros e o tempo iam passando, a distância seria aplacada em questão de tempo.
Na entrada, a benção de Moco, o dono espiritual daquele quilômetro quadrado de terra que viu tantos contemporâneos dele desafiarem o perigo para serem como ele, naquela entrada, imortais como a pedra de um busto. Embora quem passe nem faça ideia de quem seja, mas eu sim e muito.
Lá dentro, aquilo que talvez esperasse do ambiente do automobilismo, mesmo não se falando de algo internacional: endinheirados, gente com cacife se divertindo com suas máquinas velozes, resmungando algum acerto de última hora, andando apressadas, algumas exibindo sua pompa de “convidada de piloto” ou da família do mesmo, aquela distância que sempre faz-me lembrar do elitismo dessa aldeia.
Elitista? Porém, a gente está ali vendo os donos da grana trabalhando pela nossa diversão. O que queria era deixar meus tímpanos incharem com o ronco furioso dos GTs que cruzavam a reta dividindo curvas e retas atrás de uma posição mais. Outros, vociferavam o prejuízo de um toque, uma rodada, um acidente, a gente só batia palmas.
E não estava sozinho! Tão em casa me sentia quanto quem lá convivia todo dia. As resenhas que tivemos, aprendendo e compartilhando, tomando um pouco de cada suco: da técnica de pista e das histórias curiosas, seja do mundo automotor ou daquelas presepadas que nos faziam rir. Tudo alternado por violentas cruzadas de motores gritando em plena reta.
Tempo passava, 18h, box zero. Ali dentro, a rapaziada do track day esperando a hora deles aproveitarem das ondas da pista do modo mais veloz possível. Milton era o cara mais preocupado do mundo: rodizio de pneus, parafuso espanado, um a menos no dianteiro esquerdo, quase o come de raiva mas bora, não dá pra parar.
O coração já não controla a ansiedade. Não era, ainda, aquela ansiedade de um navegador em abstinência de adrenalina. Admito, tinha meu medo: enfrentaria a velocidade pura e aplicada que só via na televisão, admirando em face de reverencia e deleite o controlar furioso do bólido e a escala sonora de um motor batendo em seus giros.
Disfarçava, respirava fundo. A eventualidade do capacete do dono do emulado de Ragnotti parando na minha cabeça foi um toque cômico entre os amigos a volta: sim, uma cabeça 59 não deixava caber o casco adornado de “flores de laranjeira”, para a personificada depressão de Milton, lembrando vagamente da noite de Le Mans.
Ajustes, medições. Milton deixa um beijo na dona Nathy enquanto eu e o Grego babávamos com o mago Patrick e suas mil planilhas. Que gênio! E um gênio cuja resenha se aproximava do nosso nível de camaradagem: sem arrogâncias, pura vontade de mostrar pra nós o bastidor mais detalhado, profundo, milimétrico da tão cobiçada performance.
E nessa convulsão, ao nosso redor, tantos e tantos se avolumavam. Carros de passeio em traje de prova, máquinas nascidas para as pistas, mecânica nacional ou técnica importada, Chevrolet, Renault, Volks, BMW, Porsche, Citroen, entusiastas, famílias, amigos, que momento, que casa, que aconchego entre tanto, entre carros.
Eu estava em casa! Mesmo sem entender da técnica, mas um garoto de olhar quase poético para o metier da velocidade. Dos grandes aos jovens e moças da confraria ao meu redor. Abraços emocionados, trocas de informação e risos típicos de fim de semana. Era um ginásio, ali estava o “futebol de fim de semana” dessa gente, para simplificar aos leigos.
No meio dos nossos risos, Milton avisa rápido: “Boina, chegou a hora!”. Respiro fundo, cravo o capacete, abro a viseira, tenho tempo para a última graça e lá vamos à pista. Perdi a conta dos apertos de mão emocionados, símbolo de uma amizade nascida desta mistura da técnica com a crônica aqui enraizada neste blog e nos amigos que nos cercam.
A máquina francesa com raiz romena vai avançando lentamente, seguida por outros tantos. Vieram as duplas para tentar – eu disse “tentar” – gravar na hora do avanço das curvas: Siviero para Biasion, Pironnen para Kankkunen, Kivimavi para Allen… por que não uma Pons para Mouton? Lugar de mulher é nesse panteão também.
Liguei a câmera, sabia que não ia ter estabilidade na imagem, mas ia fazer o meu. Milton poderia chorar quantas vezes quisesse depois, não sabia quanto seria, mas seria algo rápido e profundamente emocionante. Pergunte pra ele, quantas vezes dividiu isso com amigos no momento mais altamente feliz de sua vida?
E eu ali, testemunha ocular de tudo que ele me contava de um fim de semana de track: acerto, velocidade, derrapagens, rodadas, sangue, suor, lágrimas e penas de urubu voando aleatórias, fora a coleção de troféus, livros, carrinhos e memórias. Sim, chama-lo de “herdeiro do Edgard” não era exagero, era constatação, o irmão mais veloz.
Ah Edgard… beijo hipoteticamente vossa mão e rezo para Moco, em algum lugar do S do Senna pedindo a benção, porque enquanto pensava, Milton caía voando da saída do pit-lane para a reta oposta. Full flap, giro subindo, o coração entre a adrenalina e as mesmas frases do “promessinha” para o Enerto, na épica volta ao contrário.
O primeiro toque na zebra do lago, lembrando do vento frio de Guarapiranga e rindo do frio que a mãe do Barrichello tava passando nestes dias nublados. Milton sobe rumo ao laranja, lembro de Emerson rindo no volante do Mavecão: “aqui, só laranja tira o pé”.
Ele estuda, ataca as zebras furiosamente, nem pisca e o Pinheirinho descortina na minha frente. Mergulhamos. Milton parecia o regente da orquestra, cada parte do corpo parecia ter se fundido com a engenharia franco-romena que ele mesmo tinha moldado para si. Punta-tacos que entravam no ouvido como lanças, causando arrepios e extasios.
Bico-de-pato, um pouco embarrigado mas perfeito, logo caíamos as cegas para o mergulho até a Junção. Chega rápido, não dá nem pra respirar. Ai, era o máximo, a forra. Milton crava o pé, a gente parecia voar, e a tão sonhada naturalidade da velocidade chegou. Que momento para o garoto do sul do Garcia que só sentia isso nos jogos e chegava a 110 se encolhendo na 101.
Quando logo, eis ele, em toda sua glória: o S do Chico Landi, ou melhor… daquele maluco filho do Sr. Milton e da dona Neide que movia a cabeça de muitos ali. É piegas lembrar de Ayrton, mas essa sede de adrenalina com doses de perigo, ele mesmo dizia diante um Jô curioso: “é muito atraente”, e é mesmo.
Perigo? Milton estava quente, tirou duas rodas do chão, sentimos furiosamente o carro querer mudar o rumo. Ele corrige, toma o Sol na linha e continua o rumo. No fim da segunda volta, paro de gravar, queria curtir. Eram dois amigos desafiando o perigo, olhando na cara dos deuses velozes e degustando o momento.
Dali, mas duas velozes e a ultima, em alerta ligado, para os boxes. Na reta oposta, no entanto, a poesia se funde com a técnica bruta da velocidade: Milton chora, esquece todos os pesos que o atingiram e lembra do amigo que ladeia-o, brincando humildemente com a cena digna de filme: “para de chorar que ainda temos que chegar”.
O coração batia ainda acelerado, queria me derramar em lágrimas puras, por tanto que percorri para saber que sonhar era grátis, mas realizar é prêmio: superei limites, exigi minha liberdade, perdi um amor que se esfriou nas cruezas de si mesma, me reergui, respirei fundo dos estresses, repeli os maus e me cerquei dos melhores. Alguns deles, ali, nas curvas da velha pista.
Eu não apenas confirmei minha doce paixão veloz, mas me apresentei (e me apresento) a Interlagos da forma como eu sei bem: poeta, menino, valente, cercado dos amigos e do herdeiro de Edgard, que ainda chorava copiosamente. Alegria transbordando pelos olhos cujo capacete não deixava disfarçar. Ele está amando, ele está feliz.
O resto da noite? Mais velocidade, risos, algum susto e um frio aconchegante, brindado com hambúrguer e risadas deliciosas. Não precisava acabar. Aguentaria mil milhas dentro daquelas curvas mais e mais, constantes reverencias para aquele templo, olhando na cara do negativismo e gritando, junto dos amigos: eu pisei e vivi Interlagos.
Não será mais a mesma coisa. Outras vezes por lá virão, claro! São Paulo é logo ali e tudo vale para viver o sonho… ou melhor, a realidade. O metier do automobilismo exige seus batismos, e aqui estou, enfim batizado.
Interlagos, muito prazer, Boina.