Silêncio em Ramallo

Em algum lugar de Ramallo, uma bandeira engravatada está arriada a meio-mastro numa teimosa chuva de outono, como se avisasse à algum desavisado das curvas que para lá levavam que um filho ilustre não iria mais ser encontrado por lá.

Ao longe, numa garoa fina por entre as “carreteras” de hoje, parece se ouvir ao longe um ronco feito em eco caindo como um assombro de um bólido roxo que só os mais paranoicamente apaixonados podiam perceber passando. Nas curvas, ansioso pela chegada, teimava ao sair da pista, quase de lado, como se aquela fosse a última volta da grande corrida.

O menino que era moleque nas viradas de volante, mas não tinha trato de rico moço das curvas de Buenos Aires, cuspia na cara e falava palavrões na mesma forma que um maço de 43/70 o deixava calmo. De degrau em degrau foi se tornando, na língua-mãe, um “triunfador”. Emulava as frases da juventude transviada dos Iracundos e saia por ai com um saco sobre o ombro, levando consigo a vontade de vencer sempre, não importava como.

Gênio? Teimoso? Audaz? A cena veloz da Argentina é tão rica e sólida quanto a história que o cerca e que tão pouco sabemos ou usamos de espelho. Se nós olhamos para fora e vimos grandes ídolos vencerem quase que dando de ombros para a velocidade doméstica, lá o ídolo não bastava assombrar o mundo: ele tinha que assombrar a própria casa, os rivais, levar as “hinchadas” abaixo na mais pura demonstração de coragem e velocidade atrás de um volante.

Se Fangio tinha cinco placas de campeão na sua prateleira em Balcarce, o automobilismo argentino parece, até hoje, querer rechear prateleiras e prateleiras de nomes que foram o deslumbre de torcidas, garotos e garotas sonhadores com dias velozes. Como era aquele guri magro, “Flaco” da pequena Ramallo, que queria andar tão veloz quanto as estrelas, vê-las paradas no contemplar da velocidade que não via rivais nem obstáculos, e se os visse, empunhava a audácia e o peitaço para fazer valer sua voz e vontade.

O fogo, a mecânica, a rudeza das pistas celeste-e-brancas desta Argentina, brigas que se assemelhavam aos movimentos intensos do Tango a cada derrapada, e aquele garoto fez questão de ilustrar elas com um pesado som do Rata Blanca quando a revolta subia o sangue e as palavras não mediam-se em meio a raiva de um fim de corrida antes do fim do relógio. E quantas foram, imortais e cômicas, raivosas e marcantes.

Naquele galpão da sua Ramallo, estão guardadas glórias e “coches” solenemente silenciosos aguardando um momento de rever o sol e recordar os dias de luta e de glória. Eles aguardam, mas seu dono e único digno daqueles volantes não mais volta. A garoa fina, o eco de um Chevy roxo roncando nas carreteras de Ramallo, mas nada passa, apenas um destes espíritos cansados subindo rumo a pista de cima de nossas cabeças.

E Flaco não está mais lá, nem aqui, apenas nas memórias de quem o conheceu nas tardes de Carburando e Campeones, o reconheceu como lenda bruta argentina e um tão grande quanto as pistas que corria. Que era motivo de briga e sangue tanto quanto Boca X River ou um Carlos Pellegrini com cavalos mordendo os dentes na faixa final.

E Flaco não está mais lá. Ramallo anda quieta depois do último ronco do Chevy, do último fogo do Renault…

E Flaco, não está mais lá…

Gracias, Flaco!

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