Como sabemos tão pouco sobre nós mesmos em Le Mans, meus caros e caras!
Este país verde-e-amarelo que, vez em quando, anda tão ou mais veloz que tantos outros, pode nunca ter chegado a glória maior de levantar o galardão geral do grande teste de resistência do automobilismo mundial, mas não se pode negar que nossa passagem por lá tem histórias saborosas, entre a vitória e a glória do competir em alto nível.
Desde a audácia pioneira de Bernardo Souza Dantas, há quase 90 anos, vimos ao menos um patrício entre os ases de todo o mundo em várias categorias em grande parte dos encontros naquele canto francês. Nunca faturamos o troféu maior, mas não podemos dizer que chegamos perto várias vezes, oito para ser exato até o término dessa crônica, sendo quatro segundos lugares e três terceiros overall.
É muita coisa para se contar e recontar. Cada cidadão brasileiro que por lá pisou já daria um compêndio apenas recordando sua passagem. Dos mais celebrados aos menos lembrados. Mas aqui pelo G&M, nós temos um fascínio pelo Lado B das coisas, aqueles contos que são, por alguns engravatados, tachados de “medianos de fim-de-pelotão”, mas para nós, são tão grandes quanto os gloriosos que festejam no alto do pódio.
Por exemplo, e esta aqui é uma destas coisas tão pouco faladas e lembradas pelo seu sabor de aventura de tempos românticos das curvas de La Sarthe: 1978, onde Emerson quebrava pedras no F5A e Nelson Piquet ainda estava sendo lapidado como um futuro campeão, aquele gigante traçado francês recebia quase que ocultamente a chegada de três brasileiros com cara de boêmios das nossas pistas, tudo pelo sabor da velocidade e da justa homenagem.
Coube ao já experimentado francês Henri Cachia abrir as portas da sua garagem de preparação na pequena Bondy, nos arredores de Paris, para os três cidadãos vindos do outro lado do Atlântico: o invocado Paulão Gomes e sua vasta barba a lá Henri Pescarolo, ladeado pelos hoje saudosos Marinho Amaral e Alfredo Guaraná Menezes. Diante deles, uma besta-fera adormecida esperando o momento de rasgar a Hunaudieres outra vez: o Porsche 935/77.
Os três não eram qualquer malucos que faziam do esporte a “patota de fim de semana”. Tomemos Guaraná como exemplo, que barbarizava a concorrência na F-1600 a bordo do indefectível Polar/Gledson nos fins de semana de velocidade movidos pelos engenhos de São Bernardo do Campo. Alias, o contato de Guaraná com um francês de seu time no certame, Alain Vignais, que proporcionou este momento na garagem de Bondy.
O esquema todo amarrado para os dias em La Sarthe: o apoio da CBA, patrocínios nacionais mas um Porsche bom de briga com um turbo apenas. Era o que tinha, são 700 HP embaixo do capô mas dava pro gasto. A pedido de Paulão, uma homenagem que poderia soar insólita, mas que pesaria muito no para-brisa daquele bólido de Stuttgart: Cachia Team Pace, a lembrança do grande Moco, ex-parceiro de Paulão nos “pegas” do Grupo 1 e que fora tirado do agito do automobilismo cedo demais, num acidente aéreo um ano antes.
Moco, alias, conhecia tão bem aqueles meandros de Le Mans quanto o aguerrido Cachia. Até aqueles dias, ele era o dono da nossa melhor chegada na grande prova, com o segundo posto geral (e surpreendente, diga-se) a bordo de um dos esquifes escarlate da casa de Maranello. A vontade de estar na pista pagando tributo ao vulto de Pace talvez não permitisse algo assim ou mais, mas já que aqui estamos, por que não fazer o nosso e ver no que vai dar? História pros netinhos, vai ter de sobra!
Os primeiros treinos, e os primeiros sustos: Marinho Amaral, exímio bota da Divisão 1, estava naqueles dias de estudar para a prova antes do sinal bater. Não se entendia com o carro e andava em ritmo bem abaixo. Henri até colocou um piloto dos seus contatos de sobreaviso, mas talvez tenha soado apenas como susto, pois Marinho começou a encaixar seu estilo de pilotagem e entrar na linha… ufa!
Alias, vale falar que o torpedo que tinham em mãos não era qualquer coisa, até porque falar em Porsche naquela ocasião e naqueles tempos era, realmente, estar bem equipado com um carro com nome, sobrenome e tarimba. O 935/77 não era o mais atualizado para aquele ano, pois a casa oficial tinha na pista, além dos 936 da turma de ponta (conta-se Jacky Ickx, o moveis-e-utensílios daqueles tempos), o famigerado 935/78, ou “Moby Dick” para os íntimos, com suas adições avantajadas e, por que não, elegantes.
O tempo no geral não permitia ilusões, lógico: 23° posto, então “vamos fazer o protocolar e assim o Moco fica decentemente homenageado”. Assim chegamos ao dia da grande largada, e os primeiros movimentos preocupavam monsieur Cachia, com pouca evolução em pista e o cuidado que beirava o exagero para garantir o carro íntegro no primeiro trecho de prova.
Só que não vamos jamais rebaixar o talento dos três cavalheiros, nunca! Seguir o plano naquelas condições inéditas ao trio era o que havia. Quem nunca se aventurou na casa tem que saber jogar o jogo com quem já sabia se mexer lá dentro. Os trabalhos de box e troca de pilotos funcionaram como um reloginho, os adversários foram ficando e, logo, o que era um 18° lugar nos primeiros movimentos virou um sétimo posto, sendo o segundo lugar no Grupo 5.
Tá bom assim, Henri? Ele devia acompanhar tudo comendo lápis atrás de lápis e dando risada a cada estatística positiva que caía na sua mesa. Aquele monstrinho alemão cravejado de marcas tupiniquins só não era mais rápido na sua classe do que a experiente Kremer e seu trio americano, vencedores da categoria. Agora, atrás de Paulão, Marinho e Guaraná, estava o avantajado e hoje tão celebrado Moby Dick, terceiro na classe e oitavo geral, para a incredulidade de Rolf Stommelen e da trupe da casa oficial.
Vez em quando, nas pesquisas sobre Le Mans e o Brasil, sempre passamos por este Porsche em especial e tampouco falamos dele. Uma aventura que teve isso tudo em pista fora aquelas galhofas e momentos aleatórios inesquecíveis, sobretudo para Paulão, o único dos três vivo para contar isto tudo, de quem chegou sem saber o que iriam domar de bólido ou o que enfrentariam e que foram muito além do “simplesmente completar” para escrever uma história tão grande e, infelizmente, tão esquecida.
Eles nunca mais voltariam a La Sarthe, a Cachia não iria além de um 15° lugar geral no ano seguinte e brasileiro na prova seria visto apenas seis anos depois, com um ainda jovem (e já calvo) Roberto Moreno tripulando um (quem diria!) Porsche. De lá para cá, muitos se aventuraram, alguns apenas pelo prazer de estar por lá enfrentando seus limites, e outros ainda trazendo troféus em pódios e vitórias em classes que nos estufam o peito de orgulho e reverencia.
Como disse lá no começo: sabemos tão pouco sobre nós mesmos em Le Mans, meus caros e caras, mas não podemos mentir que este país cheio de contradições, festerês e de gente de labor constante apronta momentos que francês nenhum pode apagar, nem nós mesmos, e como autênticos amantes do motorsport, nos cabe as justas palmas.
Eles não conheciam o desafio, foram lá e fizeram… olha, o Moco deve estar feliz!