A sombra do Flaco era um arco-íris…
A tarde deserticamente quente de Rafaela, as curvas e trechos rápidos, combinados a um asfalto abrasivo e destruidor de pneus.
A vantagem toda ao lado do imbatível Fuego do cavalheiro de Ramallo, este que estava apenas começando a construir seu domínio com o diamante francês.
O seu adversário? Um senhor demolidor de campeonatos que passou a régua na insipiente F2 Codasur e aprontava das suas no automobilismo caseiro: Guillermo Maldonado, o melhor garoto-propaganda que a Volkswagen podia ter nas pistas portenhas.
Sua arma? Um multicolorido e invocado VW 1500, o velho “Milqui” de guerra que todo bom argentino reconhecia tão bem quanto o velho Falcon ou o legendário Torino nas ruas de Buenos Aires ou qualquer cidade daquele cantão de América.
O Milqui, nascido no seio americano com acento argentino da Chrysler-Fevre, era um desses anacronismos automobilísticos do continente: era Dodge, baseado no Hillman Avenger britânico, caiu na mão da Volks quando da compra do diamante americano pela casa de Wolfsburg e que, na Argentina, é refeito numa carroceria que entorta o nariz do puritano.
Aqui pelo Brasil, este mesmo Milqui era, na acepção do projeto, o que chamávamos, carinhosamente, de “doginho”. O 1800/Polara velho de guerra que demorou a engrenar no mercado nacional mas que, ao contrario do coirmão portenho, morreu nas primeiras estocadas alemãs na velha casa da Simca.
Teve seus contos nas pistas brasileiras? Até teve, com relevante importância, mas como o argentino tem essa fama de cabeça-de-gasolina tão enraizada quanto a nossa (e pouco sabemos), lá o Milqui virou foguete, e na segunda vida que ganhou da Volks, aprontou de tudo nas carreras dos hermanos.
A insipiente TC 2000, nascida dos entreveros de fim de anos 1970 no carro-chefe TC, foi o palco escolhido. Ali, o Milqui era um bicho furioso, com preparação, a típica tomada de ar no capô (coisa de argentino) e um primeiro período de domínio, com três canecos na mão de Jorge Omar “El Profe” Del Rio e Luis Ruben “El Loco” di Palma.
Em comum entre El Profe e El Loco estava um livery daqueles icônicos: o dourado dos cigarros 43/70, um daqueles clássicos argentinos que podiam ser vistos nos bolsos dos apostadores do Carlos Pellegrini ou nas ruas empoeiradas d’El Caminito. Nas pistas, eram o eterno fantasma brasileiro nos tempos da F2 Codasur, quando este era o que adornava o Berta-VW de Yoyo Maldonado.
Eis aqui o dito “hombre” da nossa história: nascido em 9 de Julho, no interior da província de Buenos Aires, Maldonado era um demolidor de monopostos, mas não um De Cesaris da vida. Entrava para ganhar e enfileirava títulos entre os bólidos. A F2 Argentina e a F2 Codasur que o digam, e se segure na cadeira: em sete anos, entre as duas categorias, foram sete títulos!
Yoyo já conhecia algo do metier da TC 2000, mas cairia de cabeça mesmo a partir de 1987, quando a F2 virou F3 e a brincadeira perdeu um pouco a graça para ele. Entraria para ganhar? Talvez nesta feita ele teria de suar um pouco mais, sobretudo tendo em mãos o defasado Milqui diante do poderoso Fuego.
E do outro lado da cerca, o espiava sorrateiro um certo Flaco: Juan Maria Traverso é outro destes patrimônios das carreras portenhas. Enfileiraria o TC 2000 e azucrinaria com a Chevrolet nos anos 1990, seu auge na TC, entre roxos OCA e bodes na torcida. Antes de estourar lá, no entanto, sua vocação estava nos Fuego montados pela Renault com o toque divido do mago de Alta Gracia, o lendário Oreste Berta.
Flaco, antes de mais nada, era só apelido. O cidadão era ácido, agressivo, quase um misto de Dale Earnhardt com A.J. Foyt movido a mate e parrilla, não media palavrões e, se possível, vencia em três rodas ou pegando fogo. Era um espetáculo na pista e fora dela, e em 1987 o Fuego negro era apenas mais uma de “intimidator” envergando azul e branco.
Para Yoyo, a luta era dura e cruel de alguma forma. Mesmo com a finesse de Edgardo Fernández e da trupe que tinha reunido ao redor de si, superar o poderio de Flaco e da Renault minunciosamente acertada pelo “mago” era uma tarefa hercúlea, sobretudo numa pista veloz e cruel para os pneus como a clássica praça de Rafaela. Vencer lá? Esquece, hermano!
Yoyo e Flaco dividiam o campeonato, mesmo com a superioridade de equipamento de Flaco e a vantagem que tentava construir. Seria difícil para-lo, mas Rafaela e uma tarde quente separava o espetáculo maior. Era 4 de setembro de 1988, tarde primaveril quente, e partiram a batalha, mano-a-mano, cabeça-a-cabeça, como um Carlos Pellegrini fora da capital.
E voltamos ao começo, a sombra do Flaco era um arco-íris, ou como era então conhecido, o “policromático” Milqui do mago Edgardo…
A tarde deserticamente quente de Rafaela, prova 10 das 14 do ano, entre as curvas e trechos rápidos, combinados a um asfalto abrasivo e destruidor de pneus.
A vantagem toda ao lado do imbatível Fuego do cavalheiro de Ramallo, este que estava apenas começando a construir seu domínio com o diamante francês.
Yoyo parte em quinto, quase de binóculo a ver Flaco a sua frente. Dentre tantos encontros, nem eles imaginariam o que fariam naquele forno vespertino depois da luz verde.
A largada, e de quinto para segundo foi um pulo em seis voltas. Yoyo cavoucando, achando espaços e usando tudo quando podia usar. Flaco era soberano, mantinha a ponta sem grandes preocupações, ao menos com os pneus naquele tostador de asfalto.
Era lucro um segundo lugar com um Milqui policromático mais lento naquela condição em uma rápida Rafaela? Bem, talvez seria se não fosse Yoyo atrás do volante. O jogo de ataque ia começar e o hermano que aguardava uma contenda de Boca ou River no evento seguinte daquela tarde teve de catar mais uma Quilmes na geladeira para ficar calmo, a pancadaria ia começar.
Flaco, impetuoso, toma o primeiro golpe depois da arrancada de Yoyo. As curvas velozes eram quase a chance suicida para uma ultrapassagem, no primeiro movimento de passagem até o fim se sucederia uma verdadeira corrida de bicicleta, quando a ponta era quase trocada em revezamento.
Yoyo cola e passa, Flaco acha espaço e passa. Ora o Fuego negro do cavalheiro de Ramallo, ora o policromático Milqui do demolidor de 9 de Julho. Yoyo por fora, Flaco com a faca nos dentes, o narrador da ATC em pé na cabine, era uma senhora história para os netinhos.
O cheiro do cambio do Fuego era uma constante a frente do Milqui, e mesmo inferior em desempenho, aqui era tática de cabeça com braço, onde dá pra encaixar, eu passo. E este pensamento se passando na cabeça dos dois, em cada curva e reta da loira Rafaela.
Flaco, Yoyo… Yoyo, Flaco, os volantes mordidos a raiva, vai ser para quem passar na hora certa, no timing certo. Flaco comendo as zebras, Yoyo vesgo com olho na frente e no retrovisor. Cinco voltas, três voltas, uma volta, pneus borbulhando no limite dos equipamentos. O moderno Fuego ou um destemido Milqui.
E quem tinha olhos abertos sem ser consumido pela adrenalina, viu com clareza e deslumbre. A última estocada de Flaco, a tentativa final… o narrador esticando a voz… Era de Yoyo, era do Milqui.
Quem viu aquela exibição, jura que jamais esqueceu dos detalhes sórdidos de uma grande exibição de dois cavalheiros e seus carros. E mais: a ousadia de uma máquina antiga, ultrapassada e afiada superar o impossível, com uma rara demonstração de inteligencia e força sobre a raiva incontida pegando “fuego”, pura e simplesmente.
Das páginas heroicas do automobilismo argentino, aquela tarde em Rafaela ficou marcada, mesmo que o vencedor daquele dia seja apenas o vice-campeão daquele ano, mesmo que aquela fosse uma das quatro vitórias daquele ano e mesmo que o bólido em sua mão não veria mais as pistas nos anos seguintes.
Yoyo chegaria ao sonhado título anos depois, também a bordo de um Volks. Mas o charme do policromático Milqui do cidadão de 9 de Julho e o que ele escreveu aquele dia, isso não sai do coração carburado de todo argentino que tem, na pista, o seu grande campo de glórias, histórias e memórias.
Rafaela, 4 de setembro de 1988, quando sombra do Flaco era um arco-íris que “anda… y anda… y gana”.
Gracias, Yoyo!