Por convenção da vida e dos compromissos, uma temporada de F1 começa e termina. Óbvio ululante, já diria Nelson Rodrigues, todo ano tem-se um campeão, um vice, promessas e decepções, mudanças e permanências. É um ciclo, como tantos que existem na vida de cada um. É um processo, já estamos acostumados a tanto.
No ponto final de cada odisseia veloz reservam-se passagens únicas, exclusivas, aquelas que permitem que o término seja uma constante rememoração a história de um campeonato decidido ou, simplesmente, do famoso clima de “fim de festa” que toma conta das vielas estreitas, cheias de famosos e puxa-sacos ladeando pilotos, executivos, engenheiros e mecânicos das equipes.
As especulações de mudanças ainda fervem para alguns neste fim de semana derradeiro. No entanto, fora deste caldeirão borbulhante de tensões, todos já vão à pista com gravatas e macacões afrouxados, festejam, respiram fundo o fim de tudo e contam minutos para a última volta como crianças no fim da aula. Descontração no ar, despedidas recebidas com sentimentos pesados ou aquela sensação de livrar-se de algo, é o fim.
O fim de tudo, o término, o ponto final no anuário, a última linha tracejada com borracha, suor e algum arranhão na pintura do bólido. Admito que é estranho criar crônica sobre fim de temporada antes desta vigente chegar, ao menos, na metade. Mas confesso, amigo e amiga veloz, meu martelo mental ressoa a necessidade estranha de voltar num canto da Oceania que tão bem conhecemos.
Ela foi, por anos, o ponto final que a F1 acostumou-se a ver no calendário. Tampouco, insolitamente seria o melhor tempo, decidiu um mundial: aquele 1986 de respiração suspensa ante um pneu rompido em plena reta e um Nelson Piquet tentando o milagre de descontar 1 segundo a cada volta para suplantar Alain Marie, o Prost, o professor que não acreditava que o fim lhe traria a gloria mais inesperada.
Enfim, mas longe de 1986. Estamos vivendo este pesado e corrido 2024 com o estranho e pesado pensamento que ronda nós, incautos ou conhecedores da velocidade. O chefe não está neste plano passam-se três longas décadas, mas parece até que o capitulo final, aquela ópera trágica manchada de sangue e poeira da Tamburello, não foi escrito exatamente naquele 1° de maio. E ai, eis que as sombras do derradeiro momento de um ano antes deste surgem: é Adelaide.
Simpático recanto urbano da Austrália Meridional, a capital daquele lugar, com clima clássico beirando o retrô e um trajeto apertado que, por uma década exata, foi o ponto culminante de calendários do golden time do motorsport maior. Adelaide, de jockeys, parques e um pôr-do-sol dos mais belos entre os Down Under. Adelaide, rastelada pelos malucos da arquirrival Melbourne. Adelaide, do dia 7 de novembro de 1993, talvez sendo ali o fim de tudo.
E sabíamos? Então, hoje torna-se até mais ruidoso rememorar esta passagem derradeira daquela jornada pintada em bleu-blanc-rouge pelo mesmo narigudo professor de 1986. Nada a decidir, muito a despedir-se. A largada quente daquele dia que viu, pela única vez naquele período, o tão decantado “Magic Senna” sair na pole depois de conquista-la quase que por acaso, em uma McLaren trafegando pelo rincão no cheiro da gasolina do tanque.
Eis o domingo, e aquele típico ar derradeiro mistura-se ao calor da tarde australiana, entre suas latas de Foster’s terminadas ávidamente, viseiras para tapar o UV impiedoso e o clássico verde-amarelo adornando arquibancadas para o ato final. Naquela grelha, 26 botas, alguns olhando o 1994 com esperança ou temor, outros pensando no amanhã longe daquela muvuca que não lhes inspirava mais, outros desejosos por estar em uma quente praia, entre mulheres e prazeres marítimos.
Riccardo Patrese, o símbolo maior da longevidade do automobilismo daqueles tempos (e meu, pessoalmente) observava em volta sem a devida inspiração poética do momento, mas talvez caísse na real que era o último baile da estrada armada na velha “sombra” de 1977. Ali perto, Derek Warwick, sob a sombra do irmão partido e distante de tempos venturosos, sentava-se no bólido vermelho-e-branco nipo-britânico para a última partida naquele ambiente. E tantos outros pelas voltas sonhando com convites de última hora, chances, descanso e um drink, nada além.
E lá na frente, como se observássemos um hipotético poente de um dia que começou em 1984, o professor francês e o “atrevido brasileiro de capacete amarelo”, como frasearia Celso Freitas. De um lado, a mesma sensação da ultima dança mesmo que sua mente perdida em cachos típicos de artistas parisienses dissesse um silencioso “não vai embora” dessa loucura. Ao olhar ao lado, o vilão de outrora cujos sentimentos pesarosos e quase assassinos voavam para um lugar passado, e que tal como ele, vivia seu adeus as armas.
O chefe, no lugar de honra, observando numeros e detalhes de um cantinho insólito que acostumara-se a sentar, trabalhar duro, sair e respirar ou a gloria ou a decepção. Naquela temporada, os insucessos avolumaram, mas não apagaram páginas de espetáculos versados em chuva fina ou intensa, sob o frio britânico, o calor brasileiro ou o fanatismo nipônico. E as malas ainda pintadas do vermelho-e-branco tabagista estavam à porta, aguardando serem adornadas com o sonhado, desejado e ambicionado azul-britânico da casa de Grove no “dia” seguinte.
Eram as despedidas, as que conhecemos, as mais discretas e as mais berrantes, e aquelas que, tanto tempo passado, ficariam grifadas como “a última” em tantos compêndios. Da luz verde ao bandeirar frenético do indefectível Glen Dix, em seu terno total aussie, 79 voltas, tempo necessário para ver, derradeiramente, uma F1 que não mais voltaria, que cristalizara-se em atos mínimos e pequenos, entre o futuro promissor e o passado saudoso e cujos contornos de 1994 ajudariam aquela tarde de novembro a ficar marcada de outra forma.
No alto da glória, o chefe puxa o rival francês para o seu lado, sombras de tempos intensos e pesados marcados em vermelho no livro obrigatório da F1. Do outro lado, o inocente filho de campeão mundial que conhecera durante aquele período quem ladearia boxes no alvorecer seguinte, uma testemunha de um arremate tão profundo que talvez ele, até os dias de hoje, não conseguisse definir o significado daquele instante entre um gole de chá e outro.
Adelaide, tão inocente parada final que toma ares de despedida de um período a outro quando retornamos para aquele ponto da década, da história, da velocidade arcaica e dourada. Dali para frente, alguma coisa seria escrita tão pesada e marcante nas linhas temporais que 7 de novembro de 1993 não seria só o fim de uma temporada inesquecível, mas algo mais para reflexão nossa e de tantos ao voltarmos as curvas do velho parque.
Não é capaz de perceber? Reveja a prova com o olhar deste escriba e depois venha conversar comigo. É preciso sentimento para entender uma história transformada com o tempo, com o peso dos acontecimentos, ausências e descaminhos, uma pequena dose poética e alguma saudade, sem dores e raivas, a permissível e sábia que todo sábio veloz tem.
Adelaide, 7 de novembro de 1993… e depois disso, tudo seria um tanto diferente…