O dia que Sonic perdeu para Senna

Eu sei, quem conhece A BOINA há algum tempo vai me perguntar como eu “requento” este relato por mais uma vez, acho que a terceira na contabilidade geral. Mas, para mim, talvez seja a forma mais “fora da curva” que se tem para contar como foi aquele 11 de abril de 1993. Sair um pouco do padrão de “remontar a história” e usar da metáfora misturada as lembranças juvenis nesta viagem de três décadas atrás.

Neste ano, tem-se um motivo mais forte para rememorar Donington Park neste formato: são 30 anos, o tempo e seu lado implacável continuam nos lembrando da nossa idade e da nossa saudade de dias daqueles para a F1. Dias em que o fator “tempo” podia fazer qualquer certame virar um espetáculo sem favoritos, embaralhando de verdade a loteria pluviométrica que é correr na chuva contra a já determinada turma da ponta.

E aqui entram minhas sombras e lembranças mais profundas: quem acompanha este circo, jamais esquece dos primeiros contatos com a velocidade, mesmo que eles sejam quase névoas numa mente ainda pueril como a minha de dois para três anos de idade. Dia de páscoa, meu pai animado para mais um GP e eu, criança ainda descobrindo o mundo, acordado a revelia para não mais dormir em dia de corrida, admito.

Meu aniversário de três anos: a julgar pela Lotus na parede, alguma dúvida sobre o esporte que eu começava a gostar?

Ah! Para mergulhar nessa metáfora, faço mais um adendo. A primeira versão deste texto nasceu dentro de um fórum especializado no universo do ouriço mais veloz do mundo. Sim, eu mesmo não sei, até hoje, como fui cair num grupo de pessoas que falavam de Sonic – videogames afins e animes – como naqueles dias. Mas para quem curte F1 como alguns que encontrei por lá (Heax não me deixa mentir), é obrigação voltar a 1993, quando o ouriço inimigo de Eggman e amigão de Tails era um fenômeno juvenil e, como tanto, tinha seus espaços comerciais negociados.

E eu era uma criança fora da curva mesmo. Meus pais não tinham dinheiro para comprar um Mega Drive dos mais modernos (sonho infantil!), mas a F1 era de graça: bastava ligar a TV num domingo de corrida e estávamos na melhor plateia que se podia ter. Galvão Bueno de volta a casa platinada e sem mais rusgas com Reginaldo Leme, Roberto Cabrini ainda nos boxes e sonhando com as investigações que faria no futuro, além de um grid recheado de caras lembrados pela confraria até hoje, só para não citar os óbvios Senna, Prost, Schumacher, Hill e por ai afora…

Precedentes

Mas vamos juntar as pontas pra, depois, descambar na poesia pop-virtual que começamos: a história de 1993 já estava correndo, como bem sabemos. As Williams “de outro planeta” estavam em outra galáxia com as inovações trazidas pelo FW15, para o sorriso amarelado do veterano Alain Prost e do novato Damon Hill, pela primeira vez andando com um bólido que dignava-se ser um carro de verdade.

Mas não se engane que era tão fácil quanto parecia: o início daquela temporada não indicava isso. Remoendo-se do veto passado, assinando boladas corrida-a-corrida e com um equipamento inferior a casa de Grove, Ayrton Senna operava pequenos milagres, faturava seus milhões por peleia e estava nas cabeças com o narigudo naquele início de ano.

Pra encurtar o parágrafo, o Chefe foi segundo em Kyalami, num primeiro duelo entre o francês e o atrevido sapateiro Michael Schumacher, e faturou abaixo chuva e loucura popular a prova de Interlagos. O Professor venceu na África, mas sucumbiu ao dilúvio paulista, temos algum equilíbrio ai por mais que não pareça.

Os primeiros movimentos de 1993 para Senna: duelo com Prost e Schumacher em Kyalami (acima), e a consagração nos braços do povo em Interlagos (abaixo)

E, se o equilíbrio era algo imprevisível, o que dizer de correr numa pista jamais usada pela categoria e que só era conhecida de quem correu de F3? Localizada entre as colinas do condado de Leicestershire, na nublada Inglaterra, Donington Park era uma parada clássica para algumas outras categorias, sendo em parte as de acesso a F1. Novidade no calendário já era sinal de salada, isto se somarmos uma pista nova a boa e velha chuva britânica, que não tem igual.

Só que, antes de mergulhar de fato naquele fim de semana, desviemos nosso olhar ao Sonic. 1993 era uma mina preciosa para a Sega no mercado global de games. Finalmente, os japoneses do lado azul da força tinham alguém para fazer frente ao imbatível italiano bigodudo Mário Bros, e não se vexaram a aplicar ao Sonic The Hedgehog um arsenal mercadológico pesado desde seu nascimento, em junho de 1991.

A midia forte: A Sega cola a velocidade astronômica de Sonic à poderosa Williams. Prost e Hill não fogem das ações

A jovialidade do Mega Drive e a revolução em curso dos 32 bits contribuíram para colocar-se mais gasolina no fogo da briga. Em dois anos, o Sonic era um dos sinônimos de videogame, ao lado do italiano bigodudo, e reforçar esta marca era a missão da turma da Sega. Então, em se falando em velocidade, por que não atrelar a imagem veloz do ouriço a algo que fosse unanimidade no mundo veloz?

E assim, entre nomes de peso que adornavam o livery azul-amarelo da Williams – como a tabagista Camel, as máquinas e filmes fotográficos da Canon, a puro malte cervejórica da Labatt’s e petrolífera francesa e parceiríssima Elf -, lá estavam a Sega e o maroto Sonic. Se a memória não me trollar, era a primeira vez (e talvez a única até hoje) que uma marca de games patrocinaria uma equipe de F1, e isso a Nintendo jamais tirou lasca por lá até hoje.

A corrida e a metáfora

Domingo de páscoa, pista pronta, treinos feitos. O dia da prova e o evento recebeu um trato especial por parte da Sega, comprando praticamente todos os espaços comerciais da pista e transformando Donington em uma Mobotropolis sob a terra. Era o palco que a Williams esperava recolocar em ordem as forças, e parecia-se indicar assim depois que Prost e Hill fecharam a primeira fila.

Era evidente que burritos a menos no motor faziam sua diferença naquelas curvas rápidas. Andando o que tinha e não tinha, Senna foi relegado a quarta posição, atrás também do sapateiro e dos cavalinhos a mais que trazia no engenho Ford da Benetton. Havia, no entanto, uma chuva incerta, intermitente, um clima bem britânico de tempo fechado e cheio de neblina mudou o cenário da festa. Será que Sonic gostaria de lidar com água?

Corte rápido: no Brasil, quem começava a abrir os ovos de páscoa parou a sarabanda dos papéis coloridos por momento. Os responsáveis pelo assado dominical correram para a TV e aumentaram o volume e, os que saiam da cama, correram para a sala mesmo com os olhos por abrir. Já era um ritual conhecido de quem curtia a rotina esportiva dominical: ela começava pelas 8h da matina, com a largada da F1, antes até mesmo do café acabar de ser passado no coador de pano.

O panorama de Donington, adornado ricamente pela Sega: Era o palco armado para uma festa de Grove?

Retornando a Donington: dizem os entendidos dos games que as fases que envolvem água são as mais terríveis nos jogos do ouriço. E que feliz coincidência de dizer isso tendo em vista que Prost, do alto de suas vitórias e títulos incontestes, tinha a mesma aptidão para a água do que Cascão fugindo da Mônica embaixo da chuva. Pista molhada de tempos em tempos, cenário perfeito, veríamos um espetáculo como foi em Interlagos umas semanas atrás? Veio a luz verde…

Senna cuidou-se, patinou e esquivou-se de uma manobra estranha de Schumacher a sua frente. Caiu para quinto, mas logo foi a caça do sapateiro sem maiores dificuldades. Ao passa-lo, tinha na mira a Sauber negra do amigo do sapateiro, Karl Wendlinger. O austríaco nem viu a sombra que o passou. Mal se deu conta e notou o trafegar do Chefe a sua frente, com a mira apontada para a dupla de Grove. Era o momento.

Damon, o primeiro, sem oferecer muita resistência ante a manobra escorregadia do Beco. Prost levava certa vantagem, mas talvez pensasse quanto tempo esta pista ainda vai ficar úmida para poder escapar. Pensou demais, incorporando o terror aquafóbico de Sonic, como que se visse um vulto semelhante a Eggman na sua traseira, Senna atirou, beijou rodas, antes que o hairpin sumisse na névoa dos dois carros, o Chefe tomava seu posto.

É aquela coisa que o próprio Edgard definia como “inexplicável, sensação que se vive e não se explica. O que fica, se conta, o resto se absorve”. Tente você explicar, uma primeira volta como aquela? Para primeira lembrança de F1 da vida, eu não poderia pedir melhor…

O golpe milimétrico: antes que o hairpin fosse contornado, Senna chegava aos pés do ouriço

E esse conto do Sonic, André? Aqui, talvez, já caiba aquele transcendente que separa o real do abstrato, o texto histórico da poesia. O temor de água nunca foi tão concreto, tão palpável, como se nem sendo os pés de Prost fosse uma ajuda a toda sua velocidade. A sua caça, um sujeito vermelho como Eggman, mas bem diferente nas intenções. Senna não sabia “robotizar”, era um duelo mano-a-mano, o enredo perfeito para o jogo mais difícil do ouriço, com várias fases em um único dia.

Foi, mesmo, uma corrida de fases. Senna e Sonic, cada um com seus dados jogando com a instabilidade do tempo. Sobrou até volta mais rápida passando pelos boxes, combinando esta marotice a uma estratégia certeira e a precisão de relojoeiro que já conhecíamos do Chefe. Prost, o ouriço incorporado pela mídia em volta do autódromo, Trocou os dados pelas incertezas: carro morrendo, pneus velhos, táticas amassadas e jogadas pela janela sem entender como estar naquela posição, como se acostumar com o ser mais rápido que não era, em tese, mas rápido do que ele.

O Chefe guiava o fino, havia dado o nó tático e parecia ter a meteorologia sob seu controle. Estava uma volta a frente da corrida inteira e o pano estava perto. Sonic ofega, os famosos pisantes vermelhos não surtiam efeito na sua velocidade habitual. O cidadão envergando vermelho como Eggman estava derrubando o propalado favoritismo acerca do seu nome. Os aneis ficavam pelo caminho, sobravam os dedos e o reconhecimento de uma derrota, mesmo ele estando vivo e bem vivo a sua maneira.

A quadriculada! Festa em casa e em várias casas pelo pais, outra vez extasiadas com o espetáculo de quem a imprensa internacional chamava de “Magic Senna”. Espetáculo digno de 1993, tão memorável mesmo sendo até previsível. Sonic foi derrotado, mas não sem sorrir maroto como talvez Prost não o estivesse após a salada russa em que se enfiara. Todos batem palmas onde estavam, tinha que ser um monstro, sem comparações a maldade natural do “homem-ovo” dos jogos eletrônicos, claro.

Tipico: bandeira na mão. Era mais um domingo feliz para o torcedor no Brasil. Sacramentado o espetáculo
O Chefe e Sonic, juntos depois do embate: o ouriço virou troféu no fim da contenda. O dia virou história

Entre tantos simbolismos, das falas e gestuais, talvez o que fica para ligar a metáfora ao mundo real foi o curioso, e emblemático, encontro do cansado Sonic e do Chefe no pódio, num modesto troféu em cobre. O Beco ergue o ouriço, era o vencedor do dia, o mundo iria dormir mais emocionado naquela noite e o MP4/8 iria ganhar um ouriço atropelado como adorno na lateral do cockpit. Marotices das provocações do esporte, claro.

Já se vão três décadas, e como esse mundo teima em mudar, as vezes para o pior do que vivemos naquele 1993. O Chefe deixou seu casaco vermelho em terra e não mora mais por aqui. A F1 não é mais a mesma, parece até mais fresca e midiática do que era competitiva e heroica. As poderosas Williams e McLaren são apenas sombras de tudo aquilo que viveram. Já o ouriço? Ganhou até filme, continua figura carimbada do pop, o mais rápido de todos contrariando Rainbow Dash, o descolado que segue tendo um único rival: o italiano bigodudo da Nintendo.

Recordar passagens como esta, de três décadas atrás, é deleitar-se numa F1 que não mais existe, que coloria o mundo do alto da arrogância, dos jogos políticos e do mundo podre das negociatas escusas, mas que não deixa o espetáculo de lado, para furor de fãs como eu e a confraria toda. Um universo perdido que permitiu-nos fazer uma viagem poético-metafórica envolvendo o real e o virtual sem óculos de realidade aumentada…

…e que permitiu-nos imaginar o dia que Sonic, aquele que muitos dizem ser o ouriço mais rápido do mundo, tinha alguém a sua frente. Que saudade!

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