O Graining & Marbles nasceu em 2015. História sabida, contada e recontada pela diretoria deste grupo que participo desde quando eu e Douglas Sardo resolvemos expor, de alguma forma muito nossa, a visão que tínhamos da F1 e de outras categorias que cobríamos piamente a cada fim de semana.
O grupo cresceu, somou Roberto Taborda e Milton Rubinho ao comando geral que, em parte, tem o dedo e iniciativa de cada um que aqui acompanha, opina, observa, faz certa galhofa e não economiza na paixão pelo esporte a motor. Vivemos momentos de derrotas e extasio na pista (pela TV ou diante dela) e também exultamos sem freio quando um dos nossos botas fatura a grande glória nas pistas deste mundo azul.
Mas uma coisa é certa, sem pachequismos nem ufanismos: nascemos no meio do jejum. São 16 anos sem que a categoria maior veja um piloto vindo da terra de Fittipaldi, Piquet e Senna vença uma corrida, nos faça viver aquelas sensações que nossos pais e tios se acostumaram a viver na era de ouro, aquela que dizem ser “chata e um porre” mas era o testemunho do talento e garra do piloto brasileiro em meio a nomes de alto quilate e máquinas indomáveis.
Dentro da nossa roda, temos amigos de várias vivências e idades, mas é também certo que uma boa parte dos que integram as fileiras do G&M são de amigos e amigas que só sentiram a vitória de um patrício no circo quando, de fato, compreendiam este sentimento. Isto é: quando “se deram por gente” que curte velocidade mas que não deixa de exultar quando é um brasileiro que está no alto do pódio.
Vencemos na Indy, nas categorias de protótipo e turismo, nas motos e nos certames de base, cuja felicidade deste escriba é ter sido, em alguns momentos, voz da vitória de alguns deles graças a mão da oportunidade que Rodrigo Mattar me dá como narrador de categorias como a Eurofórmula, onde o jovem Fefo Barrichello me fez entender essa sensação adorável de narrar com toda a capacidade do pulmão o tento de um brasileiro nas pistas do mundo.
Barrichello, esse sobrenome foi, de fato, a primeira referencia concreta de um brasileiro no grid. Mesmo acompanhado por tantos outros “sonhadores” na peleia bruta e inglória de uma F1 mais crua como a dos anos 1990, um momento efêmero de gloria, por menor que fosse, era festejado efusivamente. Como se agarrar no velho costume das vitórias dominicais que vivíamos nos tempos do “tríduo” que mencionara acima.
O pai do Fefo, o Rubens, agarrado a incorreta responsabilidade de ser “sucessor de Senna” que lhe fora imputada, não teve vida fácil. Quando eu começava a entender o que era F1 de fato, era ele que ainda tentava, dava murro em ponta de faca e recebia em troca mais piadas e difamação do que palmas e incentivo. Era o dito “sucessor” nos ensinando a força que perdas e fracassos também fazem parte do sucesso e, nem sempre, ser grande necessita de uma placa da FIA ilustrando a parede de casa, mesmo que soe ser um sonho inatingível.
Quando Rubens subiu em seu primeiro pódio, no alvorecer de 1994, eu ainda tentava entender o mundo a minha volta. Quando tirou no sangue um segundo lugar num incomum cenário de Montreal, um ano depois, a Indy meio que roubou atenção daquele bom domingo canadense fora-da-curva da crise que vivia. Sorri discretamente quando vieram as conquistas da Stewart, a chance de vê-lo no pódio contra todas as impossibilidades de uma maquina limitada como a do velho escocês.



Mas e a vitória? Que gosto tinha? Que sensação trazia? Meus pais viviam naquele discurso repetitivo e enfadonho do “não vai ter igual a Senna”, quase uma eterna profissão de dor e martírio continuada desde a panca na Tamburello. Coro que era repetido pelos mais velhos, que acompanhavam entre risos e xingamentos o jovem filho do seu Rubão tomando as cacetadas por ser um pária no volante de uma poderosa Ferrari.
Ampliava-se ainda mais esta frustração coletiva a galhofa sem sentido, a piada feita apenas por seguir esta mesma – e constante – dor da perda amplificada pelo tacanho pensamento do “torcer para ganhar” que todo brasileiro médio sentia em qualquer esporte que o fizesse sentir-se como o maior do mundo. Não importam as conquistas menores, vencer era o mínimo aceitável para ter o mínimo de aceitabilidade.
Eu ria das chacotas do Casseta & Planeta, mas perdia o semblante quando a sátira apontava o dedo para Rubens. Não é pachequismo este sentimento, é uma espécie de percepção precoce do que era ou não era digno de sátira ou galhofa, sobretudo com algo que te movia o gosto esportivo já tão cedo.
A turma jogava bola no campinho e eu imaginava corridas e corridas em volta da casa ou com meus brinquedos. Sabia o que era um brasileiro vencer apenas na Indy/Mundial de cada dia, mas a F1 era aquela coisa que só se sentia algo leve e distante em vídeos antigos de arquivo, quando o chefe passava com a bandeira em riste em mais uma comemoração dominical.
Ninguém podia esperar que Rubens, partindo do distante 18º em um típico fim de semana para esquecer já de princípio, poderia fazer no sentimento de tantos, especialmente de uma criança de 10 anos que nunca tinha ouvido ao vivo o velho Carlos Eduardo exultar com vigor um tento nosso na F1. E o dia 30 de julho começou como todo domingo de corrida: fim de Globo Rural, café quentinho, a tirar um original pão com ovo na cama e um dia chuvoso no Reino do Garcia.

Já era anormal pensar que Michael Schumacher não estava na pista, para a alegria de minha mãe que não tinha traquejo com o alemão e torcia febrilmente para Mika Hakkinen o superar em pista. Rubens, silente e na dele, passando um por um, combinando velocidade e precisão em cada momento que rasgava a Floresta Negra.
Não era um domingo normal: fora o pão com ovo na cama que pedira à minha mãe, um alucinado operário da Mercedes invade a pista e as ações param. Tempo para se arrumar na cama quente e observar o tempo fora de casa que não convidava pra nada. O quarto de meus pais virava a sala de estar e, ao romper da bandeira verde, com alguns lances mais: está vindo chuva em Hockenheim e… Rubinho está na frente!
Como? Eu ouvia marteladas e marteladas de que Rubens e primeiro lugar em uma corrida eram quase como água e óleo. Um lance que combinou sorte com peitaço e o filho de Interlagos, observador de represas e sambista de pódio encarou o desafio de uma pista meio água-meio seca para pontear uma corrida nos momentos finais. Seria possível?
As voltas vão baixando: 10, 6, 4, 2… meus pais começam a gritar e sorrir. Eu não sabia se gritava, sorria, vibrava, plantava bananeira ou corria em volta da cama. Lembro de minha mãe lembrar repetidamente de um detalhe tão pequeno quanto dilacerador de emoções: “será que vão tocar o Tema da Vitória?”. Era a volta final e não se ouvia mais nada.
Rubens cruza a última chincane. A câmera muda para mostrar a entrada triunfal do brasileiro num estádio encharcado, ainda calçado em pneus de seco, balançando levemente nas saídas de curva. Carlos Eduardo estava, talvez, mais incrédulo do que nós todos mesmo sabendo dos pormenores que o levaram a estar narrando naquela forma perto do pranto incontido, natural de quem está com a emoção pulsando nas veias da garganta.
Carlos Eduardo avisa na última curva e minha mãe treme os lábios: “e nós vamos ouvir o Tema da Vitória que há sete anos não tocávamos”. Aponta na reta, a casa rossa balança suas bandeiras e o mundo vai abaixo. Alguns lembram de Senna, inevitável, nós esmurramos o ar com os punhos com a mesma força que o Rubens de Interlagos socava o ar molhado alemão como um expurgo. Era mais do que ajudar a equipe, era romper a teimosa barreira de vencer na F1, para ele e para um país todo.
Tudo que se passou depois, entre a vitória conquistada e o pódio abaixo de chuva dupla – da natureza e dos olhos do paulista – foi algo tão sensorial quanto saudoso. Então era essa a sensação de uma vitória brasileira que os antigos viviam falando “do tempo do Senna”. Imagens incomuns para um garoto de 10 anos que nasceu perseguindo esta sensação, convivendo com as derrotas seguidas e, ainda assim, correndo ao redor de casa imaginando suas corridas e seus campeonatos.
E caramba, 25 anos passaram pelo relógio da vida. Rubens trouxe consigo outras tantas vitórias e, depois dele, Felipe Massa o fizera repetindo as mesmas sensações e frustrações de um “racer” que sabe torcer pelo melhor dos seus na pista. E torcer mesmo abaixo da descrença e chacota de outros tantos que ainda vivem presos nesse “tempo de Senna” como um burro luto eterno.

Vivemos ainda dentro deste novo jejum, como dissera no começo dessa regressão toda. 16 anos sem vitória, outras três décadas sem título na tão pop e exaltada F1. Aprendemos todos a ver a vida veloz fora do circo maior e celebrar as conquistas dos nossos fora dele. Gritar pelas vitórias do Fefo talvez soe como gratidão ao pai dele, que foi o responsável por arrepiar tanto a minha alma veloz naquele domingo chuvoso de 2000.
Alias, Rubens, Rubens Barrichello, que tanto cascudo e galhofa teve de engolir em seco. Eu vi naquele vale entre Guarapiranga e Billings, quando o outro filho (o ousado Dudu) arrancou o grito da goela minha e de tantos a minha volta, que não há espaço num mundo são e consciente para patacoadas movidas pela burrice do “torcer para ganhar”, a mesma máxima que o cunhou de “pé-de-chinelo” e “tartaruga” e que aqueles semelhantes como eu pareceram fazer questão de rasgar em berros alucinantes como nunca.
Talvez todas estas linhas não façam sentido nenhum para quem as leia, mas se você tem um sentimento “racer” e entende o que é isto tudo quando a glória máxima vem de encontro a você vinda de uma pista que tanto você acompanha, certamente tem uma lembrança, reflexos, imagens e sensações únicas de momentos onde quem era o mais rápido era um bota brasileiro.
Enfim, fazem 25 anos e foi algo além do especial. Um momento capital para tantos que viveram o jejum e, um dia, puderam ouvir o Tema da Vitória daquela forma que nossos pais ouviam a cada domingo.
Um dia, a gente sai desse jejum. E eu me pergunto rodeado dos amigos e amigas do G&M: como será esse dia?