Parc Montjuïc, 50

Circuito de rua na Espanha… é novidade para você?

Para mim, ao menos, não é coisa nova. Tem mais história embarcada, entre o belo e o trágico.

Valencia? Nem de longe o charme e a marca de ser uma pista especial. Só mesmo a marca de 100 vitórias do Brasil anotada lá por Rubens Barrichello, em 2009.

Madrid? No simulador, já pareceu mais uma armadilha do que uma pista que se respeite. E ela nem chegou a ser riscada com borracha ainda.

De teatros da velocidade, o lado flamenco da península ibérica está bem servido, isto é um fato. Pode ter aspecto de “jogado em algum lugar” como Jarama e Jerez, ser pista “padrão para tudo” como Montmeló ou “cativo de uma coisa só”, como Aragon.

Mas correr no “corredor de casa” teve lá sua beleza em tempos dourados da F1, sobremaneira. Entre 1969 e 1975, sempre em revezamento com o traçado sinuoso do norte de Madrid, o Parc Montjuic era o que enchia os olhos. Não a toa, chama-lo elogiosamente de “Mônaco da península ibérica” não era exagero.

A beleza e o lado esportivo de Montjuic: fontes, castelo, mirantes e o Estádio Olímpico (abaixo), palco da abertura dos Jogos de Barcelona, em 1992 (Reprodução)

O parque, que no bom português significa “parque dos judeus” é um dos pontos tão referenciados na Espanha de belezas forjadas na mão de Miró e Gaudí. E falando em Antoni, quem não chegava perto da gigantesca Basílica da Sagrada Família provavelmente a mirava de um dos belvederes existentes naquele monte.

A arte e a exuberância entre o natural e o forjado em pedra lá se encontram. Cercando o castelo, jardins e fontes monumentais ilustram a paisagem e encantam os turistas. Lá também, os Jogos Olímpicos de Barcelona encontraram algumas de suas bases mais importantes, com várias instalações esportivas ainda lá presentes.

Ali perto fica o Palau San Jordi, onde o Brasil faturou o ouro no volei naquele 1992 e com aquela geração pesada de Tande, Giovane, Marcelo Negrão e outros.

Mas o turista incauto talvez hoje não ouça e nem perceba. Aquelas vias asfaltadas que cortam a região do parque eram, de fato, a “Mônaco da península ibérica” com justa razão. Cada curva exalava uma pintura artística, marcando firmemente essa mistura do belo com o trágico.

Quem gostava de lá era Jackie Stewart, vencedor por duas vezes no traçado e com duas máquinas diferentes. Emerson Fittipaldi também deixou lá sua marca em preto-e-dourado, faturando em 1973 com um misto de talento e oportunismo numa pista que castigava motores e suspensões.

O traçado do circuito do Parc Montjuic: trechos travados e de alta se alternavam, entre altos-e-baixos da topografia da pista (Reprodução)
A beleza da arquitetura e natureza que eram palco do serpentear dos bólidos no tempo que a pista revezava com Jarama. Abaixo, Jackie Stewart rasgando o trecho de largada, ele o maior vencedor do circuito (Reprodução)

Matéria da Quatro Rodas de maio de 1973: Emerson ganhando “como campeão”, aproveitando os abandonos naquele dia (Quatro Rodas / Arquivo Pessoal)

Não era brincadeira. A fiz várias vezes no simulador e a doma do carro tinha que ser próximo do perfeito. Eram trechos travados intercalados com passagens de alta velocidade e, no plus, tendo altos e baixos que levavam o conjunto ao limite estrutural e os músculos ao próximo da fadiga.

As imagens do passado são lindas, mas não escondem a natureza desafiadora de chegar próximo do ilimitável em cada viração. Acelerar ali tinha seu prazer, sobretudo pela, como disse, beleza do lugar.

Mas 1975 bateu a porta. A F1 que dava de ombros com a segurança parecia mais de olhos abertos aos detalhes que podiam matar. Muitos já haviam deixado o grid e a vida nos anos anteriores e, mesmo parecendo coerente, acelerar naquele corredor com a evolução técnica que se seguia não se mostrava algo tão são de pensamento.

Tinha quem chegasse mordendo o volante por alguma necessidade de resultado. Era a quarta prova de uma temporada que começou sem um favorito concreto: três vencedores diferentes, equilíbrio no grid, tudo era possível.

Só não era possível acelerar fundo com o cenário que havia em volta. Tempos atrás, foleando uma Quatro Rodas daquele ano, me deu a dimensão do que fora aquela passagem da F1 por lá: descaso, pouco profissionalismo fora da pista, estrutura falha, negligencia de comissários e chefes de equipe.

Guardas em momento de “folga” diante de um guard-rail solto nos primeiros dias da prova de 1975 (Reprodução)
Emerson e o pai (a esquerda), junto de pilotos e outros tantos, em mais uma das vistorias que fez na pista naquele fim de semana. Ele e Graham Hill eram os mais inconformados e os menos ouvidos (Quatro Rodas / Arquivo Pessoal)

Notável, aquela velha história do “tem cara de pista, bora correr”. E o pensamento sobre a segurança já não era tão escanteado como antes. O Próprio Stewart, maior vencedor da pista, que o diga. Emerson também.

Alias, o “rato” foi o mais incomodado, visivelmente. Correu a pista várias vezes denunciando os problemas. No texto de QR, pareciam ele e Graham Hill os únicos que o faziam com seriedade. Reunia os pilotos para mostrar seus pontos e, mesmo com a concordância de alguns, algo mais forte não os fazia encolher da ideia de correr.

Quem estava nas arquibancadas não notava, pilotos não queriam correr, a organização ameaçava o confisco dos carros e, mesmo pressionada, não fazia as manutenções na pista, que acabaram sendo feitas nas mãos improvisadas de mecânicos das equipes. Emerson não comprou a ideia, deu voltas lentas para se classificar e não largou, ponto.

A largada em 1975: logo menos, o primeiro acidente com Lauda e Regazzoni (Reprodução)

O dia era bonito, a pista (como disse) era bela em cada canto, mas um cheiro de sangue e negligencia rolava no ar na hora da largada, que partindo da veloz sem-reta, já anotaria a primeira carambola: quando Mario Andretti (guiando para Parnelli Jones) literalmente “empurrou” o Ferrari de Niki Lauda contra o muro, sendo o austríaco colhido pelo carro do companheiro de squadra, Clay Regazzoni, em seguida.

Instigados a seguir o protesto, Wilson Fittipaldi (Copersucar) e Arturo Merzario (Williams) recolheram aos boxes. Muito antes da metade da prova e já com alguns abandonos anotados, acontece o estrondo e a tragédia: quando Rolf Stommelen, alemão que guiava para o time de Graham Hill, passa cheio no trecho de largada e é surpreendido com a asa traseira se desprendendo do carro.

Rolf Stommelen passando pelo trecho veloz da largada: voltas depois, seria ali que sofreria o grave acidente (Reprodução)
Quatro Rodas de maio de 1975: as imagens (fortes, diga-se) dizem por si a tensão daquela matéria e daquele dia (Quatro Rodas / Arquivo Pessoal)

O bólido vira um míssil sem controle, bate violentamente e decola para o público, levando o que via à frente. Testemunha quase ocular, José Carlos Pace passa com o Brabham por sobre os destroços mais a frente, sem grandes consequências, perdendo ali o que poderia ser sua segunda vitória na categoria (ainda bem, diria eu!).

O saldo? Previsivelmente trágico. Stommelen sobrevivera por milagre e não considerou que a pista o prejudicou, mas a própria negligencia da organização deixou o rastro de sangue. Cinco mortos a beira da pista: o jornalista italiano Mario De Roia (31), o jornalista espanhol Antonio Font Bayarri (28), o espectador Andrés Ruiz Villanova (38), e o bombeiro Joaquín Morera Benaches (52). Dias depois, a quinta vitima: o fotógrafo monegasco Joseph Georges Bertolotti.

A corrida parou, o pódio foi misturado entre alegria forçada e pressa para as equipes deixaram o Parque Olímpico rapidamente antes de um possível confisco dos carros. Lucro para outro alemão: Jochen Mass, então companheiro de casa de Emerson, que faturara ali a sua primeira e única vitória na categoria.

E entre tanta ferragem retorcida, gente entristecida e assustada e pilotos entre o incrédulo e o raivoso, uma mulher saiu dali para os compêndios: o sexto lugar, ainda que lhe valendo metade dos pontos, fez de Lella Lombardi, a valente moça do Piemonte a bordo de um March quase todo branco, a única pilota a cravar pontos no mundial.

Lella Lombardi: Meio-ponto para a história da categoria num dia trágico (Reprodução)

Talvez não fosse assim que Maria-Graziela gostaria de entrar para a história, mas as circunstâncias nem sempre são as perfeitas para registrar feitos como estes.

Nestes dias de hoje, o turista incauto talvez só queira aproveitar o lado instagramável do belo e florido Parc Montjuic, o que é justificável e digno de se aproveitar.

Mas, entre tantos turistas de uma ou outra excursão, não duvido que tenha um que ainda ouça um Ford-Cosworth roncando de longe naquelas vias sinuosas e revestidas de charme do monte dos judeus de Barcelona.

Tempos românticos, tempos de coragem, de charme e sangue correndo juntos. Coisas marcadas nas curvas de Montjuic.

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