“Nesta terra é preciso ter coragem pra fazer o que estou fazendo”
Estas primeiras linhas são pura ficção de um cronista, mas se fechar os olhos no dia de hoje, quase que entrando em cheio nos pensamentos de um ocupado idealizador de uma empreitada pioneira e (até hoje) única, era mais ou menos isso que pensava depois de uma noite curta de tempo e longa de trabalho.
Dias antes, o bólido prateado que pilotava havia estatelando-se diante de um muro durante a prova de Buenos Aires. Que estreia dura: fogo no chassi, ferro retorcido, problemas mil para resolver quase de um dia para outro, e tudo isso com a etapa caseira do campeonato avizinhando-se rapidamente.
Horas antes de sair para andar na pista, ao lado da sede do time, mil coisas poderiam correr na mente daquele cidadão de estatura gigante, cabelos longos e olhar compenetrado, dentro e fora do bólido. Observava as modificações do projeto original, aquele que foi uma espécie de assombro para o Velho Mundo: o Brasil, tão cheio de contradições, era capaz disso?
A F1, circulo caro de pessoas, pilotos e engenheiros, onde o risco e a morte corriam junto dos luxos, luxurias e abusos de grana e corpo. O romantismo antigo virava uma festa em que, ainda, o dinheiro não era tanto para mover tecnologia, mas a gloria da pista valia mais, seja sendo o primeiro ou, simplesmente, estando lá para ver.
Enquanto o carro ia sendo levado à pista, entre faces de pressa e cansaço dos mecânicos, ia o piloto já fardado pensando na vida que vinha atrás dele. Uma reunião de família, nos tempos de jovens sonhadores que adoravam o aroma da borracha queimada na pista, olhou para os pais e tomava a decisão firme de abrir mão de si para que o irmão mais novo encarasse a vida dura de um piloto em construção na competitiva Europa.
Eles dois, ah os dois! As vezes rolava bronca, sobretudo quando o “rato”, o mais novo e veloz, capotou um Porsche novinho momentos depois dele ter chegado em casa vindo do porto. Nas rodas dos novos e velhos azes dos volantes sesssntistas, o sobrenome daqueles dois já ressoava como algo pesado, importante, quase digno de pompa pelo que aprontavam no pilotar e projetar: Fittipaldi.
O pai, vozerio esportivo, e os filhos inventando e pintando o sete no metier mecânico. Fusca com dois motores e aperfeiçoamentos aerodinâmicos? Ótimo! Incrementar um outro Porsche lendário mesmo que ele, vez em quando, quebrasse? Por que não? Um monoposto simples mas perfeito para formar campeões? É com a gente.
Então, acompanhando ainda o pensamento do piloto enquanto pisava no templo a frente dele, se tão longe se chegou nessa aventura europeia, por que não sermos loucos para inverter a lógica e criarmos um bólido de F1 como os que tanto vimos e corremos? O irmão é campeão e assombra o mundo, e ele ainda tinha o sangue das empreitadas, como nos tempos transviados.
Tá, nem tudo era simples. Um F1 como os europeus não demanda só o braço, mas dinheiro, tempo, cabelos queimados de pensar, tentativa e erro e acidentes como o que ele sofrera em terras argentinas. Mas desistir? E ainda começando a ouvir o burburio dos incrédulos? Acho que não era a ideia dele quando ele sentou-se no apertado cockpit e saiu rasgando a borracha em fumaça quente para ver se tudo estava no lugar para a corrida naquela mesma pista.
Era fato, ser pioneiro nesse país é muito mais coragem do que vontade. Não seria a primeira nem a última encarando problemas e faladores de plantão tachando o bólido de “Geni brasileira”, numa grosseira alusão a letra de Chico Buarque. Mas, ninguém faria, e até hoje ninguém fez como ele fez e nem mais se atreve: os tempos atuais são astronomicamente caros, chatos, sofisticados e engessados demais para um beija-flor colorido sob o prateado da lata daquele carro.
E quando paro de folear a mente atrás das imagens deste bólido vulgarmente chamado de “açucareiro”, eu mando os detratores ao inferno e faço lembrar que, se temos história, foi por gente do naipe deste filho de “Barão”. O mais velho, mais reflexivo e tão inventivo quanto o cara ao seu lado, o campeão e tão tinhoso quanto.
Talvez hoje, enquanto soluçamos, seria um dia de tirar aquela carruagem prateada da garagem, quem sabe na mão do herdeiro que teve o mesmo atrevimento de viajar pelo mundo ganhando e orgulhando o nome familiar tão pesado que conhecemos, botar pra rodar os pistões do velho Cosworth DFV e sair roncando por aquele Interlagos, quebrando um silêncio de luto com o som característico do motor que o velho Tigrão acostumara-se a ouvir.
Estas linhas tem ficção, mas contam de provas de coragem. Os tigres, por característica tem coragem de enfrentar a savana a sua frente, e um atrevido como este bota, teve pura coragem de suar, gritar, chorar e se revoltar contra o status quo e as incompreensões e escrever seu nome para que eu e os em volta de mim nesta roda do automobilismo atual olhassem para trás, entre olhos marejados e reverencias, numa palma respeitosa e saudosa.
De fato, nesta terra é preciso ter coragem pra fazer o que ele fez. E quando lembrarem dele, em qualquer carro ou pista, só lembrem que ele teve coragem, e nós podemos tê-la também, não apenas a de tirar rodas do asfalto nas curvas, mas fazer aquilo que ninguém faria e que seu coração e paixão desejam.
Gratidão, Wilsinho! Coragem é vitória, e nesta seara você foi campeão.
Pé na tábua, Tigrão!