A primeira prova de fogo

A gente vira muita lata por ai e joga no cesto comum nossas próprias glórias escusas.

Quantos por ai me perguntam com certo espanto, sabendo de minha verve veloz que cultivo desde os três anos de idade: “você ainda não viu a série do Senna?” E eu digo apenas que não, não vi e tenho uma certa preguiça, apesar de elogiar a qualidade e esmero da equipe de produção.

Isso não é para mim, não sou parte deste público e, um dia que minha preguiça me deixar, colocarei os olhos na série. “Senna” foi feito para um grupo que, se não sedento por ídolos que despertem esperança, talvez estejam necessitando conhecer um pouco do que foi o vulto que passou pelas pistas entre 10 temporadas.

Ele é fruto da boa teimosia e do pioneirismo, coisa que os Fittipaldi cavaram antes de qualquer um engraçar-se a tentar a fria Europa e tornar-se o que os britânicos abreviarem de ABB (another brazilian blood). E sobre eles, talvez algumas datas marcantes merecessem mais consideração até mesmo da velha imprensa que chamou uma de suas obras de “Geni brasileira”.

A tal Geni – cruelmente emprestada da mais “nefasta” letra de Chico Buarque – tinha sua prova de fogo por esta tarde há cinco décadas atrás, exatamente e sem tirar vírgula do calendário. Sol forte no velho Galvez de asfalto complicado e hinchas enlouquecidas pelo Lolle e que, sem perceber, viram ditos anônimos nacionais preparando a primeira de suas tantas odisséias. 122 para ser exato.

Aquele trabalho de um ano de martelo, contas, vento, solda, suor e noites mal dormidas largaria no cerra-fila, mas largaria. Partiu mostrando os dotes e exibindo linhas pouco exploradas pelos projetistas de então, como a carenagem que cobria todo o carro. Padeceu pela inexperiência e a novidade e, infelizmente, acabou interrompendo a carrera com um choque ao muro, fogo e um susto.

Qualquer um na viagem de volta, com a carcaça calcinada pelas chamas, podia achar que nada valeu ou dali não passaria. Mas o dono do carro, irmão do cara que colocou o ovo em pé duas vezes, não pensava assim. Talvez dormiu mais tranquilo por não sair queimado gravemente do bólido, mas não ia ter sossego por, pelo menos, duas semanas.

Sabia, ou não, que o pontapé foi certeiro mas teria que engolir (como talvez já sabia sutilmente) a pressa incontrolável de uma imprensa esportiva mais acostumada com o imediatismo do gol no futebol ou com o champanhe da vitória que tomou várias vezes pelas proezas do irmão mais novo nos anos anteriores, os mesmos que fariam a máquina prateada de linhas elegantes virar um inescrupuloso “açucareiro”.

Só que, quem tá na chuva, é pra se “queimar”, dizia o lendário corintiano Vicente “o pedra” Matheus. Queimou mesmo, queimaria algumas vezes mais o filme em nome de outro pioneirismo para a conta. E aquele era só o primeiro dos 122 passos que dariam no difícil, burocrático, cruel e injusto mundo da construção de carros de F1, onde o esforço suado nem sempre é premiado.

Esta é a história que me encanta e que é de meu público. Aquela que talvez não soe comercial para um seriado, mas que pede palmas e respeito aos que verdadeiramente curtem e acompanham a velocidade em todos os seus formatos. E se a imprensa ainda tão imediatista e ufanista não faz questão de dar palavras e méritos por não ter vitórias envolvidas, assim nós os fazemos.

Então, celebremos em prece ao Tigrão e em honra aos pioneiros: o FD01 é patrimônio, história viva e ousadia, e até hoje, já vão cinco décadas daquele dia primeiro, ninguém ousou fazer o mesmo deste lado da América.

O resto, é literatura para quem (realmente) gosta.

1 comentário em “A primeira prova de fogo”

  1. Esse foi um dos melhores textos de vocês, meus parabéns!

    A saga do Wilsinho foi um feito e tanto, jamais veremos algo do tipo na F1.

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