Automobilismo e seus extremos.
A arte que combina a técnica e a audácia dentro de um habitáculo a mais de 300 por hora e que é a linha tênue entre a glória, a derrota e, por vezes, a tragédia.
Estou sentado na mesa do lado da escritora que, disfarçadamente, respira pesado tentando disfarçar os olhos vermelhos da jornada passada.
Ao lado do papel rabiscado e com gotas d’água manchado, um “cavallino rampante” amassado como se fosse tirado de uma velha caixa guardada em um armário esquecido.
1972, pude ler disfarçadamente sem a interromper numa escrita beirando o nervoso.
Comecei a falar sozinho, com certo receio que, se ela ouvisse, talvez me repreendesse dentro do nervosismo emotivo que estava.


Então, 1972: o mundo era dividido, a olimpíada era banhada em sangue e o Brasil bradava “Emerson!” tão alto quanto Pelé.
O comendador era vivo. Il Comendadore, Enzo, o próprio!
Enzo que negava-se a tirar os óculos escuros desde que o filho perdera a vida tragicamente.
Sorria em meio ao luto. Era o construtor mais feliz, tão feliz quanto os que margeavam a pista no ato final do mundial de resistência, esporte-protótipos, como queira chamar.
Buenos Aires, Daytona, Sebring e Brands.
Monza, Spa e a temida Targa-Florio, entre camponeses e alucinados do vinho.
Nurburgring, Zeltweg e Glen.
Escapou Le Mans, pelo bem da história, diria ela em voz ainda trêmula.
Em meio a crise e desconfianças, o 12 cilindros forjado no metal frio de Maranello era campeão. Incontestável, colossal, espetáculo que só puniu com uma vitória perdida.
“Carro bonito é carro vencedor”, estava escrito numa margem de papel.
Carro bonito, carro vencedor…


Na mesma mesa, dois momentos, dois rasgos temporais no mesmo relógio da história.
53 anos.
Em cima, sorridente, o “Captain Nice” sorri ao lado de uma besta-fera teuto-americana num raro momento de silêncio.
Mark Donohue, o eterno fiel escudeiro de Roger Penske. Que, abaixo, em pose resignada, assina com feições de adeus um dos 963 derradeiros da marca alemã que tinha levado em busca de mais uma glória para sua prateleira.
53 anos.
La atrás, a dominancia, o Can-Am contemplava estarrecido Donohue e Follmer no destroçar da concorrência. Vitória, recorde, constância, ícones de uma antiga parceria.
Abaixo, deslizes, derrotas, momentos raros de sorriso e esperança e a decisão superior que coloca outro ponto final em um voo maior da casa de Stuttgart num terreno que tão bem conhecia e conhece.




53 anos, dois extremos.
Da glória que batia a porta tanto tempo depois.
Da retirada que doía no coração de quem conhecia, de livros e fotos, a história escrita no passado.
Onde um vencia, outro guardava peças e partia.
A escriba limpa as últimas lágrimas, termina sua resenha e prepara a publicação.
E eu, outra vez, contemplando a arte que cerca os lances frios do automobilismo.
Os números, as estratégias, as contas e as cifras não ocultam a poesia que se faz da alegria e da partida.
O vermelho-Ferrari exulta.
O brasão glorioso da Porsche é arriado. O capitão baixa as portas
As lágrimas são justas e a emoção existe.
A velocidade também é arte, história
A poesia do asfalto, faz parte.

