Crítica G&M – “Senna”, da Netflix

“Senna” estreou na plataforma de streaming Netflix no último dia 29 de Novembro. Produção da Gullane films, em parceria com a Senna Brands, a série retrata a trajetória do tricampeão brasileiro desde a infância até o fatídico fim de semana do Gp de San Marino em Ímola 1994.

Ayrton Senna já teve um sem-número de livros, documentários e produções cinematográficas que procuraram retratar toda a sua carreira. O mais recente e melhor avaliado até então foi a produção de Asif Kapadia, realizado em 2010. O biopic teve uma base documental e jornalística mais pungente, servindo quase que uma retrospectiva de 1984 a 1994.

Para além do piloto Ayrton Senna, o que os “cabeças de gasolina” conhecem, existe o ser humano Ayrton, dotado de CPF, mazelas, bons e maus momentos que todo mortal também possui. Este Ayrton é muitíssimo bem retratado na obra que considero a melhor e mais resumida biografia – “Ayrton, o herói revelado”, escrito pelo jornalista Ernesto Rodrigues em 2004 e reeditado neste ano de 2024. Nesta obra, o grande público fica por dentro do cotidiano do Ayrton “pessoa física”, com tudo o que se sabe ainda dele como piloto, tendo ainda um cuidado especial de contar pormenores dos bastidores dos paddocks, que é o que mais interessa ao fã de automobilismo.

A série da Netflix usa bastante desta base, mas mescla a ficção. O teor dramatúrgico é bem correlato ao público-alvo da plataforma, e também necessário para resumir e colocar o público geral em consonância com o que Senna representa hoje, passados 30 anos de sua morte. Tecnicamente, a série entrega cenas de encher os olhos, principalmente as de ação ocorridas durante as corridas, fazendo lembrar um pouco o cuidado técnico visto em Rush (2013), de Ron Howard, o filme que retratou a temporada 1976 da Fórmula 1. A trilha sonora também ajuda bastante. Ser surpreendido por “Highway Star” do Deep Purple para representar o ímpeto das provas de Fórmula Ford foi bem agradável.

A série começa com detalhes impressionantes. Logo na primeira cena, os instantes finais de Senna no GP de San Marino, com foco no olhar do piloto dentro do capacete, cortando para um Senna caminhando em direção à Tamburello e sentindo o asfalto, dando a entender que foi uma atividade feita na véspera da prova. Um close no detalhe das feridas na mão do piloto, que por estar raspando as mãos no cockpit da Williams, solicitou o ajuste que seria fatal – a alteração na barra de direção que se rompeu e causou a perda do controle do carro. Este tipo de detalhe demonstra que a produção foi a fundo para entender e retratar os pequenos detalhes que fizeram parte de cada momento do tricampeão nas pistas.

Algumas imprecisões podem incomodar aqueles que conhecem a fundo a história toda: a ida à Tamburello existiu, mas em companhia de Berger nos testes de Março daquele ano. Novamente, há que se explicar que por conta da necessidade de roteirização e adaptação para dar ritmo à narrativa, muitos acontecimentos não conseguem ficar no mesmo plano dos acontecimentos reais.

Ao maratonar a série, o expectador vai de encontro com o Senna entidade, uma personagem complexa. Porém, de tão arraigado no popular e na cabeça dos torcedores, o piloto se transforma num protagonista imediato de uma história já há muito conhecida, mas que ao ser rememorado em qualquer que seja a obra, ficcional ou não, seja lugar-comum para qualquer pessoa, gostando de automobilismo ou não.

O Senna piloto todo fã de automobilismo está cansado de saber quem é. Alguns temas que merecem aprofundamento ficam de fora quando as obras biográficas tendem a focar somente no lado vitorioso, dando um ar superlativo ao tricampeão. Sua vida e carreira foram grandiosas, mas o lado humano contido de falhas e erros enaltecem a equivalência do Ayrton “pessoa física”, o ser humano igual a todos nós, e justamente isso tende a ficar de fora numa narrativa focada no lado heroico.

A personagem da atriz Kaya Scodelario, a jornalista Laura Harrison é fictícia e serve como um plano comunicativo entre o que Ayrton representava para a visão geral do público: por vezes um piloto incrível e por vezes um piloto disposto a arriscar tudo pela vitória. Gabriel Leone, o protagonista, entrega um Senna bem fidedigno (inclusive me assustou a semelhança da voz), e agrada sua sinergia com as atrizes que fizeram parte da vida romântica do tricampeão. Para alguém que já viu muito filme blasé e novela na vida, posso dizer que não ficou um ar de dramalhão mexicano nem folhetim adolescente dos anos 1990. As amarrações de roteiro, como adaptar a história do menino que enviou a carta incentivando o piloto a não desistir e que depois o encontra em São Paulo é um arco interessante. Obviamente fictício, mas para dar uma noção da sintonia entre piloto e torcida.

Gabriel Leone junto da réplica do MP4-6, de 1991. Os detalhes agradam quem acompanhou de perto esta época da F1

A série utilizou locações em pistas da Argentina e também os modelos dos carros foram réplicas encomendadas à Crespi, do mesmo país. Por conta disso mesmo, uma bem vinda atenção especial foi dada à rivalidade de Senna com Quique Mansilla, nos primeiros anos do piloto na Inglaterra. Estes primeiros anos de Fórmula Ford foram inclusive muito bem trabalhados e dão uma noção de um início de carreira bem atribulado do brasileiro, com um fato desconhecido do grande público: a quase aposentadoria precoce logo após o primeiro título no exterior, com o piloto vindo a trabalhar nas empresas da família e interrompendo a carreira.

O arco “Fórmula 1” é passado de forma natural, mas com uma sensação de pressa. Do famoso Grande Prêmio de Mônaco em 1984 até Ímola 1994 quase não se percebe que foram dez temporadas completas. A briga com Prost, muito conhecida do grande público foi tratada com o tom dramático que exigia. As brigas com Balestre serviram para dar o tom desprezível que o antigo cartola francês despojava nas pistas e fizeram dele um vilão apropriado para a série. Nelson Piquet, grande algoz do brasileiro, foi resumido a um breve encontro no Casino de Monte Carlo ainda em 1984 e à entrevista antes do Gp do Japão de 1990, onde Piquet até defendeu Senna quando da confusão gerada pela desclassificação no ano anterior.

“Senna” entrega ao telespectador uma experiência de reviver a trajetória do piloto brasileiro, que foi um piloto muito focado em trabalhar sua imagem. Ao longo dos anos, utilizou bem e estrategicamente a associação a patrocinadores pessoais e à própria construção de sua imagem como esportista no país e no mundo. O Honda NSX, de 1992, é um esportivo com sua assinatura e deixou indelével sua associação com a marca japonesa pela qual foi três vezes campeão mundial.

No ano de sua morte, bicicletas Carraro, lanchas offshore e a superesportiva Ducati 996 estampavam a marca Senna, enaltecendo seu pioneirismo em lançar produtos licenciados. De esportista no mundo, só ele e Michael Jordan faziam isso à época.

Após seu falecimento, sua presença no imaginário do mundo das corridas de automóvel permaneceu marcante e ideias contemporâneas reforçam isso. Só para ficar no exemplo dos carros, a Mclaren lançou em 2018 o superesportivo Senna, um carro com motor V8 aspirado com detalhes fazendo alusão ao legado deixado por Ayrton. O impacto do lançamento de um carro destes é imenso, e tudo isso forjou ainda mais sua imagem como ídolo do esporte em escala mundial.

Com a série lançada numa plataforma de grande alcance, o Senna entidade – uma personagem que vai além do piloto tem sua memória resgatada para todos os públicos, e sua história merece isso. Para o Brasil e para o mundo.

SENNA. © 2024

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